Ainda
hoje não se sabe ao certo qual o número dos portugueses que,
desfeito o império colonial na sequência de 25 de Abril de
1974, retornaram de África. Algumas estatísticas referem
oitocentos mil, outras um milhão. Vieram – o eco do seu êxodo
condoeu então o mundo – de Angola, Moçambique, Guiné,
S. Tomé e Príncipe, Cabo Verde, golfados em caudais intermináveis
de espanto e desolação.
Apontada
como um fenómeno ímpar de absorção social,
só possível em povos de grande afectuosidade, a integração
dos retornados portugueses tornou-se, escassos anos após terem chegado,
um caso surpreendente. À desconfiança inicial, hostilidade
com que foram recebidos, suceder-se-ia a aceitação, a convivência
mútuas.
A
França (com retornados da Indochina, da Tunísia, de Marrocos,
da Argélia), a Itália (da Líbia, da Abissínia),
a Bélgica (do Congo) sofrem ainda internamente sequelas graves da
sua descolonização. Aparentemente Portugal digeriu-a.
Os
que se refizeram, ergueram-se, com efeito, e atiraram-se em frente. Dispersaram-se
em pequenos grupos por todo o país, e em pequenas ocupações
por todos os sectores. Como novos bandeirantes, colonos uma vez mais, foram
para o interior carregando cóleras e pânico, vinganças
e ousadias.
O
seu desespero foi a sua força. Com ajuda de instituições,
de subsídios, de empréstimos, de apoios de amigos e familiares,
começaram a fixar-se e a transformar os locais onde se detiveram.
A
emigração, a guerra e o exílio tinham despovoado Portugal.
Aldeias inteiras apenas albergavam velhos e crianças, povoações
havia que não tinham sequer um habitante. Era um país de
deserções e decrepitudes a viver das remessas dos emigrantes
e dos militares – e da passagem dos turistas.
Então
repetiram aqui o que há decénios faziam lá”Portugal
foi reconstruído pela energia dos retornados”, exclamará
Agostinho da Silva. "Eles lançaram mão a tudo, usaram
com as pessoas de cá os mesmos métodos que usaram com as
de lá. Não trouxeram divisas, como os emigrantes, mas construíram
coisas”.
PACTO DE HUMILDADE
O
exemplo que deram de trabalho, iniciativa, inter-ajuda, perseverança,
depressa lhes granjeou respeito e admirações. Fixados no
comércio, na indústria, na agricultura, nos serviços,
nas autarquias, nos partidos, nas artes, na imprensa, no Governo, tornaram-se
referências irrecusáveis.
Diversos
organismos surgiram em sua defesa. Organismos religiosos, políticos,
assistenciais, culturais, educativos; oficiais como o IARN, internacionais
como o apoio Cristão e a Cruz Vermelha, filantrópicos como
a Associação de Apoio aos Angolanos, reivindicativos como
a Associação dos Naturais de Fraternidade Ultramarina, recreativos
como os Inseparáveis do Lubango. Os mais crentes arranjaram uma
santa sua, a Nossa Senhora dos Retornados, os mais dinâmicos uma
imprensa própria.
Após
a chegada a Lisboa recebiam (parte deles) alimentação e assistência;
alguns beneficiaram de créditos, subsídios que lhes permitiram
reorganizar-se e lançar-se em diversas actividades.
A
ajuda prestada não proveio, porém, só do Estado português.
Apreciáveis fatias surgiram de outros países que contribuíram
com casas, dinheiro, géneros, empregos.
“O
êxito da integração não é total, foi
a política seguida pelo Governo que calou os retornados”, sublinha
João Cabral, do Apoio Cristão Internacional. “Separaram-nos,
polvilharam-nos pelo país, tiraram-lhes a força. Eles resignaram-se”.
A
solidariedade fez-se-lhes uma religião de pequenos rituais e memórias.
Baptizados pelo mesmo fogo, conheceram o mesmo pânico, o mesmo desamparo,
o mesmo luto – um pacto de humanidade uniu-os para sempre.
“Os
que sofreram mais problemas foram os retornados de segunda geração”,
especifica-nos a psiquiatra Gracinda Ribeiro. “Os pais foram capazes de
refazer a vida, de encontrar e interessar-se por novas actividades. Mas
os filhos sofreram uma grande inadaptação, sofreram problemas
psicológicos muito graves”.
MAIS QUALIFICADOS
Desmentindo
o conteúdo catastrofista que muitos lhes vaticinaram (serem um fardo
para as disponibilidades do país), a sua presença atenuou
as chamadas “dinâmicas regressivas” que então se observavam
entre as nossas populações.
A
maioria dos retornados adultos nasceu em Portugal tendo emigrado para as
colónias durante as décadas de 50 e 60, pelo que os seus
vínculos às origens permaneceram fortes. Quase dois terços
vieram de Angola e um de Moçambique.
Revelaram-se
“mais qualificados, não só que a população
emigrada, mas também que a restante população portuguesa”,
com uma “percentagem elevada detentora de cursos médios e superiores”,
conclui um trabalho, único do género, do Instituto de Estudos
Para o Desenvolvimento, coordenado por Rui Pena Pires, José Maranhão,
João Quintela, Fernando Moniz e Manuel Pisco, com supervisão
de Manuela Silva. “Apenas sete por cento eram analfabetos, contra 30 por
cento dos restantes portugueses. Constituíam uma população
predominantemente masculina e jovem”.
Isso
ocasionou um aumento geral de mão de obra qualificada em certos
sectores, bem como a presença destacada de muitos em lugares de
liderança, tanto no plano profissional como no político,
nomeadamente a nível local.
De
subvalorizados passam a sobrevalizados. Vivendo em círculos concêntricos,
assumem-se em certas zonas como “castas” de poderio crescente. Alguns tornam-se
os novos donos da terra – controlam vários sectores, são
a sua classe dirigente e exigente; formam uma rede por todo o país
que se organiza, alarga, fortalece, interpenetra.
As
franjas dos retornados fraccionam-se, enovelam-se, porém; alguns
retornaram sem terem partido, migrantes de outras paragens e outros desencontros.
São os indianos hindus (oriundos da União Indiana), os indianos
paquistaneses (oriundos do Paquistão), chiitas, sunitas, ismaelitas,
vindos de Moçambique onde constituíam poderosas comunidades
rácicas, religiosas, culturais; e são ainda os timorenses,
os mais desprotegidos e precários de todos.
As
organizações de apoio que lhes foram dirigidas desaparecem
rapidamente. O IARN fecha em 1977. A própria palavra “retornado”
(muitos nunca cá tinham estado) cai no desuso e no esquecimento.
ANTIGOS RETORNADOS
A nossa
debandada de África constituiu uma das grandes tragédias
da história, uma história trágico-marítima
ao contrário que vazou nos portos de Alcântara e Portela populações
em situação limite.
Com a mesma
convicção que iniciámos mares e impérios desistimos
deles, renunciámos a eles, tudo deixando por completar.
Quando
D. Dinis acaba o seu reinado Portugal está pronto. Tem o território
definido, possui campos férteis (defendidos das areias pelo pinhal
de Leiria), dispõe de castelos sólidos (que não deixam
avançar os invasores), desfruta de religião própria
(o Espírito Santo), de solidariedade social (o comunalismo), exulta
vontade de existir.
Existir
desenvolvendo-se internamente (podia ser hoje uma Dinamarca), ou derramando-se
externamente. Derramou-se. Engendra então a espantosa gesta das
Navegações que o faz mudar o mundo, e adiar-se de si.
O retorno
começou-nos muito antes de 1974. Há quatro séculos,
vindos do Magrebe, desembarcaram no Algarve e em Lisboa os primeiros retornados
do império. Eram militares, comerciantes, missionários, mulheres,
crianças, escravos, regressados de Safim, Azamor, Arzila, Santa
Cruz.
“ D. João
III, no abandono, fez o que não podia deixar de ser”, evoca António
Sérgio…
A maior
parte das evacuações foram realizadas “com tanta ordem e
concerto”, testemunha Frei Luís de Sousa, “que quando chegou a notícia
aos mouros, estava tudo feito, recolhidas nas embarcações
a gente e a artilharia, e munições, cavalos e alfaias dos
moradores”.
Foram operações
navais de grande vulto. À escala das pontes aéreas de 1975.
“Haviam-se criado duas gerações de portugueses em Marrocos.
Havia esposas, filhos e famílias a transferir, uma população
civil a transplantar, bem como fortalezas a demolir”, escreve Elaine Sanceau.
Há
400 anos, como há 20, os “traídos” pela metrópole
concentraram-se no Rossio a injuriar os governantes e os naturais. Até
que estes os disseminaram pelo interior e os integraram.
FASCÍNIOPOR ÁFRICA
África
foi portugalizada nos últimos séculos, Portugal africanizado
nos últimos decénios. Os musseques do Prenda repetem-se no
Alto do Dafundo, as marrebentas agitam os bailes dos domingos suburbanos,
as churrasqueiras fumegam, nas estradas beirãs, o caril, a cerveja,
o fumo, os fumos sobem nos planaltos nortenhos; o imaginário dilatou-se,
as histórias de caça, de aventuras, de magia, de abundância,
perpassaram os cabeços de granito e giesta.
A década
de noventa está a ser marcada pelo fascíno por África,
a melancolia dos seus mitos envolve-nos de novo, a força que se
desprende deles começa a ser irresistível sobretudo para
os que nas letras, nas artes, no pensamento, no comércio, na política,
na imprensa, a percepcionam – veja-se a série de filmes de jovens
realizadores portugueses, e de álbuns musicais, que estão
a surgir sobre ela.
“Portugal
não fez ainda o seu luto pelas ex-colónias: o silêncio
vai sendo levantado, gradualmente, mas a voz da perda não é
ainda aceite”, escreve Ana Simões SottoMayor de Almeida em “O
luto no retorno dos portugueses das ex-colónias africanas”, tese
notável a ser em breve apresentada no ISPA.
Fechado
o ciclo do império o retorno tornou-se (retorno de África,
retorno da emigração) tão importante como há
cinco séculos a partida – é por certo o fenómeno mais
marcante da história de Portugal depois das Descobertas.
Interrompido desde então (todos
quantos eram ousados e insubmissos partiam fugidos à fome, à
intolerância), só agora o País está a reencontrar-se,
a completar-se. O que coincide, e não é certamente por acaso,
com a sua entrada na CEE.
Artigo de Fernando Dacosta
In o “PÚBLICO” de 26, Abril,1995 |