Melo Antunes foi um dos militares preponderantes
em todo o processo que precedeu e se seguiu ao 25de Abril. Foi o principal
redactor do «Programa do Movimento dos Capitães», que
balizou a mudança de regime, e o autor do «Documento dos Nove»,
que foi o condutor da resistência militar ao projecto hegemónico
comunista, no Verão quente de 1975.
Vinte anos depois, em entrevista
ao DN, ele analisa aspectos do «Documento», aprecia a relação
dos partidos com o MFA, fala da questão angolana e, ainda, do seu
relacionamento político com o general Spínola.
Diário de Notícias
– Vinte anos depois, como vê o «Documento dos Nove»?
Melo Antunes – Como um daqueles
momentos decisivos para a definição do futuro, em Portugal.
DN – O «Documento»
tinha um conteúdo ideológico de esquerda muito forte. Não
lhe parece excessivo o MFA se entender como «aparelho autónomo
de produção política e ideológica»?
MA – É sempre fácil
ter razão a posteriori, nomeadamente vinte anos depois. Quem viveu
os acontecimentos da época não ficará espantado, num
visão serena dos acontecimentos, que os militares, que tinham sido
responsáveis pela ruptura com o antigo regime, fossem também
portadores de um certo projecto político. Nem sequer teriam credibilidade
se tal não acontecesse.
Mas não é por acaso
que o «Documento» refere a via democrática e pluralista
para o socialismo e, simultaneamente, deixa claro que nós somos
portadores de uma visão socialista da sociedade. Só queria
acrescentar que é perfeitamente descabida a ideia – que é
dada por Freitas do Amaral no seu livro de memórias – de que pretendíamos
impor um certo modelo de socialismo militar.
DN – Mas os Nove pronunciam-se
contra o modelo comunista, defendem a democracia, o socialismo democrático,
mas rejeitam a social-democracia. Afinal, que via era a vossa?
MA – Mais uma vez temos de nos reportar
à época. Na altura, ser social-democrata era quase ser fascista.
Agora, vinte anos passados, essa
formulação das coisas parece um pouco absurda, de facto.
Até porque nos situávamos muito próximos de uma posição
social-democrata de esquerda. Quando fui responsável pelo Plano
de Política Económica e Social, - as acusações
que me fizeram na altura foi de ser social-democrata.
DN – O sector spinolista considerou,
durante muito tempo, que o senhor era pró-PC e este fez o mesmo
juízo. A que se deve este equívoco?
MA – É muito difícil
perceber a sua origem. A turbulência da vida política, naquela
época era pouco propícia a que se fizessem exames serenos.
Por um lado, os julgamentos do general Spínola e do seu inner circle,
acerca de mim e de alguns dos camaradas que me eram mais próximos,
eram cheios de preconceitos e de juízos mais do que precipitados.
Alguém que, como eu, aparecia com uma certa tradição
de resistência era imediatamente suspeito de «estar feito»
com o Partido Comunista. Logo, grandes desconfianças. A partir daqui
era difícil o entendimento.
DN – Apesar das críticas
ao PC, havia sempre uma saída, uma proposta de plataforma em que
os comunistas estivessem presentes.
MA – A minha ideia, na altura, era
conseguir um entendimento à esquerda, para conduzir o País
na ordem democrática e na ordem económica e social. Incluindo
o PC, se ele abandonasse os seus projectos hegemónicos. De resto,
há uma certa unidade de pensamento, e até de acção,
da minha parte, quando, no 25 de Novembro, me opus a que o PC fosse ostracizado.
DN – Há mais do que isso.
A sua entrevista ao Nouvel Observateur, a 24 de Novembro de 75, diz que
é preciso agir muito rapidamente contra o PC e os esquerdistas.
Quando da publicação do «Documento», já
tinha também a noção de que era inevitável
uma contagem das espingardas, uma definição do poder por
essa via?
MA – Na medida em que estavam esgotadas
todas as tentativas de chegar a um entendimento pela via do diálogo
para nós era inevitável que o choque se viria a dar.
DN – Na entrevista
ao Nouvel Observateur, faz também avisos ao PS, chamando-lhe a atenção
para as forças da direita que estariam debaixo do guarda-chuva socialista.
Este alerta era apenas táctico, uma forma de ganhar espaço
de manobra em relação ao PC?
MA – Não era só táctico.
Era, de facto, uma preocupação. Já eram visíveis
alguns sinais de uma certa simpatia entre sectores militares de direita
e algumas pessoas do PS.
DN – O PS nunca o deixou de ter
antenas para esse lado.
MA – O que, agora, não é
segredo para ninguém. O PS chega ao poder e o próprio Mário
Soares, no percurso que faz nestes últimos anos, vai recuperar os
sectores spinolistas. Numa clara demonstração das suas preferências,
no avaliar do papel que os militares tiveram no desenvolvimento do processo
político português.
DN – Regressando ao «Documento
dos Nove», nele afinal se denunciam as situações que
Spínola havia previsto, meses antes, no 28 de Setembro. Dá
a ideia de que Spínola foi mais arguto.
MA – Aí, o máximo
que se pode dizer é que nós reconhecemos que o processo de
conjugação de esforços, por parte dos diferentes componentes
da esquerda portuguesa, tinha resultado numa situação próxima
da anarquia e da total confusão.
Esta é uma visão que
pode ter um certo sector de esquerda, com um mínimo de lucidez.
Mas que não se pode dizer que não se pode confundir com um
discurso de direita nem com uma certa visão de direita.
DN – Nunca se aperceberam, antes
do 25 de Abril, qual o papel que o PCP poderia ter tido no próprio
Movimento dos Capitães?
MA – Era difícil avaliar,
nessa fase anterior à própria revolução. Mas
a nossa ideia – e eu também tive responsabilidades nisso – era de
que só tínhamos alguma hipótese de fazer algo, até
por razões de ordem histórica, se mantivéssemos uma
grande estanquidade relativamente aos partidos da oposição.
Por isso não houve nenhuma análise feita em comum, não
houve junção de esforços, não houve nada disso.
DN – Qual era a sua ideia sobre
o comportamento do PC após a mudança de regime?
MA – Para nós era muito difícil
avaliar qual ia ser o comportamento dos partidos. Se nos ativéssemos
aos textos escritos pelo PCP, a minha ideia era de que eles aproveitariam
uma situação de mudança para tirar partido do que
chamavam a fase da democracia burguesa. O que para eles já seria
uma grande vitória, porque, pensando na situação geopolítica
de Portugal, seria insensato queimar etapas, para se atingir uma situação
historicamente mais avançada. E essa foi uma das razões da
minha forte resistência ao PC, por eles não entenderem que
não havia condições, nem internas nem externas, para
se chegar a uma outra fase.
DN – Mas o «Documento dos
Nove» era já uma proposta de renegociação do
poder, por si rejeitada na véspera do 25 de Novembro. E é
o que fazem depois. Renegoceiam o poder mas numa posição
de força, com o PC.
MA – Nunca o formulei assim, mas
admito que se possa encarar assim. E até lhe direi que poderia não
andar muito longe do meu pensamento qualquer coisa desse tipo, porque me
apercebi, na altura do «Documento dos Nove», e foi evidentíssimo
no 25 de Novembro, que corríamos o risco de sermos cilindrados por
toda a direita. Nós éramos fortes para nos podermos opor
ao projecto comunista de hegemonização do processo político,
mas não éramos suficientemente fortes para dispensar o apoio
de todos os outros sectores da esquerda com vista a impedir a restauração
do projecto de direita .
Se não tivéssemos
muito cuidado, a seguir ao 25 de Novembro éramos ultrapassados.
O objectivo da direita, ao cilindrar o PC no 25 de Novembro, era cilindrar
o resto da esquerda, que nós representávamos.
DN – Mas admite que, também
do outro lado, o do PC, o projecto era a redistribuição favorável
das cartas na mesa do poder?
MA – Do ponto de vista do PC, talvez
tivesse sido isso, mas cometeu erros crassos. Que nós soubemos utilizar
a favor do nosso projecto.
DN – No «Documento dos
Nove» há outra questão importante levantada: a de Angola.
Em Agosto de 75, três meses antes da independência, o que entendiam
que deveria ser feito se o poder estivesse nas vossas mãos? Iam
a tempo de quê?
MA – (longa pausa). É uma pergunta
muito difícil. Só posso responder em meu nome. Pessoalmente,
sentia que se estava a jogar uma situação historicamente
fundamental para o futuro de Angola e para o nosso próprio futuro.
Eu tinha ido a Angola, na qualidade de ministro dos Negócios Estrangeiros,
em meados de Julho de 75. Encontrei uma situação perfeitamente
caótica. Tive uma reunião com Agostinho Neto e com o grupo
dirigente do MPLA, reunião extremamente tensa, que tinha levado
à beira da ruptura.
DN – Nessa altura já sabia
que Agostinho Neto tinha pedido ajuda a Fidel Castro?
MA – Não. Mas a forma inflexível
e dura como fui encontrar Agostinho Neto e os homens que o rodeavam levou-me
a suspeitar imediatamente de que ele tinha obtido garantias, decerto da
União Soviética, para a situação que se ia
desenrolar até à independência.
Ali punha-se um problema muito concreto.
Estava-se em plena batalha de Luanda. A UNITA estava numa posição
relativamente neutra – obviamente uma falsa neutralidade – e o MPLA fazia
tábua rasa dos Acordos de Alvor e dos apelos feitos para se encontrar
uma situação pacífica, com base num governo de transição.
Ficou perfeitamente claro para mim que todos os acordos feitos pelo MPLA
tinham sido apenas uma forma de ganhar tempo para conquistar o poder pela
força.
Por isso, em Agosto de 75 – para
responder à sua questão – eu achava que devíamos assumir
a posição unilateral de denunciar os Acordos do Alvor e adiarmos
a data da independência.
DN – E tínhamos força
militar para isso?
MA – Sem dúvida. Tive a experiência
pessoal de ver como as Forças Armadas, quando apareceu alguém
com ideias claras sobre qual era a missão a dar-lhes, cumpriram
exemplarmente.
DN – Otelo, no final de Julho,
quando regressa de Cuba, traz uma mensagem de Fidel para Costa Gomes, dizendo
que Agostinho Neto tinha pedido auxílio e perguntando se estávamos
dispostos a intervir militarmente na situação angolana. Foi-lhe
dado conhecimento dessa mensagem?
MA – Não. Só soube
disso muito tempo depois.
DN – Não acha que houve
um erro de alianças no MFA? Não terá sido um erro
histórico a vossa ruptura com o sector spinolista?
MA – É provável. Seria
uma tese a necessitar de uma reflexão mais profunda. As coisas podem
ser vistas, agora, na tal perspectiva dos vinte anos de distância.
De certa maneira, a História não desmente o facto de eu –
e alguns daqueles que me acompanhavam de perto – ter tido, desde o início,
relutância em fazer alianças com o sector spinolista e com
o próprio general Spínola. Isso não confirma a habitual
tese que estivesse certa uma aliança com os sectores pró-comunistas.
De resto, essa «aliança»,
entre aspas, com os sectores gonçalvistas, digamos assim, foi sempre
uma aliança muito pouco firme, cheia de contradições,
cheia de fracturas. E tanto assim é que, no ano de 1975, as coisas
foram no sentido de quebrar essa aliança. Mas eu penso que a História,
tal como se fez, era aquela que tinha de ser feita.
Entrevista de José Manuel
Barroso
In “Diário de Notícias”
de 7 Agosto 1995
O DOCUMENTO DOS NOVE
No dia 7 de Agosto de1975, perante a rarefacção
do poder e crescimento da influência do PCP e da extrema-esquerda,
nas Forças Armadas, no aparelho de Estado, nas empresas públicas,
nas autarquias e nas organizações de massas – nove militares
do MFA divulgam um documento de acção política, que
viria a provocar a ruptura da esquerda do MFA. Ficou conhecido por «Documento
dos Nove» (depois de subscrito por dezenas de oficiais) ou «Documento
Melo Antunes», por ter sido este oficial o seu redactor. Desse texto
publicamos os excertos principais:
-
«Parece que se chegou a um ponto crucial
do processo revolucionário, iniciado em 25 de Abril de 1974, e que
é o momento das grandes opções, tomadas com serena
e inquebrantável energia, em relação ao futuro deste
país.»
-
«O pensamento de esquerda subjacente
à elaboração do Programa do MFA não foi em
nada ferido pelos “avanços do processo revolucionário”, onde
e quando esses “avanços” corresponderam efectivamente à destruição
das estruturas políticas, económicas e sociais do antigo
regime e foram, na prática, substituídas por novas estruturas
operativas e actuantes, base de uma nova organização político-social
de raiz socialista. Infelizmente, porém, quase nunca se verificaram
transformações desse tipo.»
-
«Assistiu-se, sim, ao desmantelamento
de meia dúzia de grandes grupos financeiros ou monopolistas; mas,
paralelamente, e à medida que as nacionalizações se
sucediam (a um ritmo impossível de absorver, por muito dinâmico
que fosse o processo e por maior que fosse o grau de adesão do povo,
sem grave risco de ruptura do tecido social e cultural pré-existente
– é o que se verifica actualmente), foi-se assistindo à desagregação
muito rápida das formas de organização social e económica
que serviam de suporte a largas camadas da pequena e média burguesia,
sem que fossem criadas novas estruturas, capazes de assegurarem a gestão
das unidades produtivas e dos circuitos económicos e de manterem
o mínimo indispensável de normalidade nas relações
sociais entre todos os portugueses.»
-
«Verifica-se a progressiva decomposição
das estruturas do Estado. Formas selvagens e anarquizantes de exercício
do poder foram-se instalando um pouco por toda a parte (até no interior
das Forças Armadas), retirando proveito dessa desordem as organizações
ou formações partidárias mais experientes e ávidas
do controlo dos vários centros do poder. O MFA, que inicialmente
se havia afirmado como suprapartidário, viu-se cada vez mais enleado
nas manifestações politiqueiras de partidos e de organização
de massas, acabando por se ter comprometido com determinado projecto político,
que não correspondia à sua vocação inicial,
nem ao papel que dele esperava a maioria da população do
País.
-
«O País encontra-se profundamente
abalado, defraudado às grandes esperanças que viu nascer
com o MFA. Aproxima-se o momento mais agudo duma crise económica
gravíssima, cujas consequências não deixarão
de se fazer sentir ao nível de uma ruptura, já iminente,
entre o MFA e a maioria do povo português.
Alarga-se, dia a dia, o fosso aberto entre um grupo social extremamente
minoritário (parte do proletariado da zona de Lisboa e parte do
proletariado alentejano), portador de um certo projecto revolucionário,
e praticamente o resto do País que reage violentamente às
mudanças que uma certa “vanguarda revolucionária” pretende
impor, sem atender à complexa realidade histórica, social
e cultural do povo português.»
-
«A fase mais aguda da descolonização
(Angola) chega, sem que se tenha tomado em consideração que
não era possível “descolonizar”, garantindo uma efectiva
transição pacífica para uma verdadeira independência,
sem um sólida coesão interna do poder político e sem,
sobretudo, se ter deixado de considerar que a “descolonização”
devia continuar a ser, até se completar, o principal objectivo nacional.
Vem-nos agora a braços com um problema em Angola que excederá
provavelmente a nossa capacidade de resposta, gerando-se um conflito de
proporções que poderá, a curto prazo, ter catastróficas
e trágicas consequências para Portugal e para Angola. O futuro
de uma autêntica revolução em Portugal está,
em todo o caso, comprometido, em função dos acontecimentos
em Angola, à qual nos ligam responsabilidades históricas
inegáveis para além das responsabilidades sociais e humanas
imediatas para com os portugueses que lá trabalham e vivem.»
-
«Todo este grave conjunto de aspectos
da vida nacional tem vindo sistematicamente a ser escamoteado e, mais do
que isso, profundamente adulterado por larga parte dos meios de comunicação
social, através de um rígido controlo partidário que
sobre eles se exerce – particularmente dos nacionalizados – assistindo-se
hoje ao degradante e vergonhoso espectáculo da corrida de uma boa
parte da população aos noticiários de emissoras estrangeiras
sobre o nosso país.
Como se isso não fosse já bastante, foi-se ao cúmulo
de preparar um projecto de diploma que, ao instituir uma “comissão
de análise” (e porque não “comissão de censura”?)
servirá de ferro de lança apontando aos últimos e
resistentes baluartes da Imprensa livre neste país.»
-
«Importa, ao grupo de oficiais que entendeu
chegado o momento de tomar posição, definirem-se tão
claramente quanto possível, perante o povo português e relativamente
às várias instâncias de poder político e, em
particular, ao MFA. E, assim, deixar expresso o seguinte:
-
-Recusam o modelo de sociedade socialista
tipo europeu oriental a que fatalmente seremos conduzidos (…)
-
-Recusam o modelo de sociedade social-democrata
em vigor em muitos países da Europa ocidental (…).
-
-Lutam por um projecto político de
esquerda, onde a construção duma sociedade socialista (…)
se realize aos ritmos adequados à realidade social concreta portuguesa
(…).
-
Este modelo de socialismo é inseparável
da democracia política. Deve ser construído, pois, em pluralismo
político, com os partidos capazes de aderir a este projecto nacional.
Este modelo de socialismo é inseparável, ainda, das liberdades,
direitos e garantias fundamentais.
-
-Lutam por recuperar a imagem primitiva do
MFA (…). É necessário denunciar vigorosamente o espírito
fascista subjacente ao projecto que, dizendo-se socialista, acabará
na prática duma ditadura burocrática dirigida contra a massa
uniforme e inerte dos cidadãos dum país.»
-
«Encontramo-nos em mais uma encruzilhada
da história, e é o MFA, uma vez mais, que compete assumir
o peso maior das responsabilidades para com o povo português (…).
É necessário reconquistar a confiança dos portugueses,
acabando os apelos ao ódio e as incitações à
violência e ao ressentimento (…). Trata-se de construir uma sociedade
de tolerância e de paz e não uma sociedade sujeita a novos
mecanismos de opressão e exploração, o que não
poderá ser realizado com a actual equipa dirigente, ainda que parcialmente
renovada, dada a sua falta de credibilidade e manifesta incapacidade governativa.»
Cap. Vasco Lourenço
Maj. Canto e Castro
Maj. Víctor Alves
Com. Víctor Crespo
Brig. Franco Charais
Maj. Costa Neves
Brig. Pezarat Correia
Maj. Melo Antunes
Cap. Sousa e Castro
in “Diário de Notícias” 7
Agosto 1995 |