Memórias do ex-Presidente
“SOARES QUERIA VER-SE LIVRE DE ÁFRICA”

 

António Barreto analisa as 1400 páginas dos
livros de Maria João Avillez

“Soares não percebeu, nem se interessou por África. Ou antes, depressa percebeu que era um problema que não podia resolver. Queria simplesmente ver-se livre de África. Era Portugal que lhe interessava. Portugal, a Europa e a democracia. Ainda hoje vive mal com as recordações da descolonização.” É assim que António Barreto analisa um dos aspectos fundamentais das memórias políticas de Mário Soares, contempladas nos três volumes que resumem a longa entrevista, transcrita em mais de 1400 páginas, que Maria João Avillez fez ao ex-Presidente da República. Barreto também assinala em Soares uma tendência para substimar os seus adversários, a começar por Salazar e passando por Eanes (“Que ninguem se iluda: foi este o seu adversário principal”) e Cavaco. E sublinha, por outro lado, que “a sua principal organização polítca não é, ao contrário do que se pensa, o Partido Socialista: são os seus “amigos””. Um trabalho para ler na PÚBLICA. Indispensável.


Toda a vida, Soares tivera essa obsessão : um partido, uma organização em nome de quem falar, uma identidade que o levasse aos jornais e à televisão, um emblema com que percorresse os corredores das conspirações, um cabeçalho que lhe permitisse falar de igual para igual com os outros, nomeadamente o PC, e uma bandeira que o levasse até às urnas. Dos piores momentos de instabilidade revolucionária, em 1975, diz hoje com brutal realismo: “O descontrolo do governo e da sociedade afligiam-me, mas ainda não era assunto que me dissesse directamente respeito. O que me interessava era a correlação de forças no plano politíco. “ E, mais adiante: “Eu queria lá saber da economia! Os economistas que se ocupassem dela! “ Por isso, em 1974 e 1975, fez parte de governos infames, foi cúmplice de gestos aberrantes e aceitou participar colegialmente em tropelias: enquanto não tivesse o seu partido, enquanto não conseguisse dizer a todos ao que vinha, enquanto não arrancasse das urnas a legitimidade e a representatividade que sempre lhe tinham faltado, Soares estava disposto a tudo. Ou quase tudo.

Não teria deixado passar a pena de morte. Jamais se conformaria com a tortura. E nunca, jamais, colaboraria na instalação da censura. Ele que, no exílio de Paris, ao procurar um título para o seu livro, nada de melhor encontrou do que “Portugal Amordaçado”. A sua obsessão exigia a liberdade de expressão. Muito poderia suportar, a censura não. O seu sentido estratégico levá-lo-ia a sentar-se à mesa com o diabo, desde que este não lhe retirasse a palavra. Mas, distraído ou a contragosto, deixou passar as ocupações de terras, empresas e casas, os saneamentos, uma ignóbil reforma agrária, as nacionalizações da economia e uma desastrada descolonização. Durante ano e meio, Soares foi, com os comunistas e os militares, tão longe quanto lhe pareceu possível. Mais longe do que muitos desejariam. Fez coisas em que não acreditou. Acreditou, ou fingiu acreditar, em ideias absurdas. Fez discursos detestáveis (“Falei ao gosto do momento”, diz ele, a proprósito das suas declarações de 11 de Março de 1975, um dos picos do movimento revolucionário! ). Foi cúmplice, activo ou silencioso. Tinha uma prioridade: as eleições. Tudo o mais era secundário.

Para lá chegar, precisava de três coisas: um partido, uma rede de ligações internacionais e a liberdade de imprensa. O resto era dispensável. Não queria sentir-se isolado, não queria ser afastado antes das eleições e não queria ficar sem ninguém à sua direita. Por isso fez negócios com os adversários, não foi radical na denúncia dos revolucionários e dos comunistas, nem sequer se preocupou com os programas esquerdistas do seu partido. Deixou passar o 28 de Setembro, juntou-se às manifestações ”unitárias” do 11 de Março e deixou correr as ocupações e os saneamentos. Manteve-se “a bordo”, apesar do Conselho da Revolução e do pacto entre o MFA e os partidos. Fez o que pôde para manter, o PSD, que lhe cobria o flanco direito. Não se impressionou quando ouviu o PS proclamar-se marxista, colectivista e revolucionário. Atacou os ricos e os remediados. Fez pactos com os adversários, que lhe queriam a pele. Colaborou com os inimigos, que desejavam eliminá-lo. Só reagiria, com toda a força, quando tentassem passar por cima das fronteiras que tinha traçado: a liberdade de imprensa e a existência de partidos. 

Tinha uma ideia fixa: adquirir uma legitimidade que a força e a organização dos outros não conseguissem liquidar. Ganhou uma vez, em 1975, nas constituintes. Mas não chegou. Era preciso ganhar as legislativas, no ano seguinte. Foi o que fez, com sucesso. Mas, antes disso, teve de passar pelo “Verão quente”, durante o qual lhe quiseram retirar a legitimidade conquistada. Ainda cedeu, ainda deixou correr. Até ao momento em que lhe tocaram num dos valores essenciais: a liberdade de expressão. Com o jornal “República”, depois de ganhas as primeiras eleições, tudo seria diferente. Não mais deixou correr. Não mais foi cúmplice. A partir daí, o curso da história voltou a mudar. Por causa da liberdade de expressão. Por causa do “Portugal Amordaçado”.

Jamais saberemos se tudo, ou muito, poderia ter sido feito de outro modo. A história está feita. Quem ganha tem razão. A política vive mal de vitórias morais ou de superioridades intelectuais. Tem razão quem ganha, mesmo se razão não tem. Teria sido possível evitar as ocupações de terras, casas e empresas? Teria sido possível impedir a degradação das Forças Armadas? Teria havido possibilidade de comandar uma descolonização que não acabasse no drama dos “retornados” e na tragédia de 20 anos de guerra civil, de mais de um milhão de mortos e de outros tantos estropiados? Poder-se-iam ter salvo os milhares de africanos que serviram no Exército português e foram sumariamente executados? Teria havido oportunidade de impedir as dezenas de milhares de saneamentos na administração e nas empresas? Teria sido possível poupar os portugueses as nacionalizações aberrantes e a destruição de boa parte da economia? Não é só difícil responder a estas perguntas. É impossível. Há anos que tento responder e não consigo. Só sei que, sem um Exército capaz, tudo o que acima se pergunta tem quase inevitavelmente resposta negativa. Ora o Exército português estava desfeito, incapaz de combater. Ainda por cima, sem comandos e sem poder político. Rapidamente aderiu à revolução. Foi mesmo um dos principais instrumentos de desnorte que se seguiu. Soares fez o percurso da revolução com o credo na boca, à procura do dia das eleições. Como ganhou, encontrou a razão. A sua vitória é um argumento de peso. As posições “morais”, como diz, são muito bonitas, mas não servem para nada. “O importante é a relação de forças no terreno.” O que era preciso era o partido. Nesta espécie de pragmatismo imperial, choca, todavia, que ainda hoje se sinta inclinado a desculpar os revolucionários de Abril, civis ou militares. A ele, que os combateu como poucos, não desgosta estender-lhes a mão. Mas fá-lo apressadamente. Não é convincente.

O modo como, por exemplo, isenta os governos do tempo e, neles, militares, revolucionários, comunistas e socialistas (e certamente outros partidos, mas na altura quase insignificantes) de responsabilidades no desastre da descolonização, atribuindo a “exclusiva responsabilidade” a Salazar, é ligeiro e expedito. Chega a sugerir que, se Salazar e Caetano tivessem optado por  “um método reformista”, não haveria, na antiga África portuguesa, partidos únicos ou guerras civis, nem os “Líderes teriam abraçado a metodologia soviética”. Dá a entender que foi essa a história da descolonização francesa e inglesa! Eis um raciocínio que não resiste aos factos. A África é um continente onde, independentemente do método de descolonização, se chegaram a contar mais de 30 ditaduras de partido único. Para não falar das ditaduras latino-americanas e asiáticas, também elas estabelecidas em países que adquiriram a independência pelos mais diversos métodos e nos mais diversos tempos. Com raríssimas excepções, a colonização e a descolonização foram episódios históricos de que resultaram algumas das piores guerras que a humanidade conheceu, o que não isenta os seus responsáveis políticos, os das metrópoles, tanto quanto os das colónias e os dos novos Estados independentes.

A responsabilidade do Estado Novo, de Salazar e de Caetano, dos seus ministros e dos seus oficiais (alguns dos quais acabaram por aderir ao 25 de Abril) é clara e decisiva. A política dos últimos 15 anos do regime levou ao que sabemos. Mas não se pode excluir a responsabilidade de todos quantos, a partir de Abril, tiveram uma participação de relevo no poder político e militar em Lisboa, incluindo o PS e o PSD, muitos moderados, civis e militares. As responsabilidades são certamente diferentes. Mas que ninguém se exclua. Os chefes políticos e militares de Angola desgraçaram mais o seu povo, em 20 anos de independência, do que os portugueses da descolonização. Mais mesmo do que o colonialismo durante a guerra dos anos 60. Mas nada disso,  uma vez mais, exclui as responsabilidades.

Percebem-se as razões pelas quais África lhe dói. Noutros campos, Soares teve a oportunidade de se redimir, seja perante a sua consciência, seja perante os cidadãos. Ocupações, nacionalizações e saneamentos, levados a cabo durante o seu tempo de “governante provisório” mas não necessariamente por sua iniciativa, ficaram para trás. Quase tudo isso foi resolvido, compensações foram dadas, a vida continuou. Graças a ele, em boa parte. Em África, não. Vinte anos de guerra civil estão ainda aí a demostrar a tragédia. A vida, naquelas paragens, ainda não recomeçou. E Soares, por diversas circunstâncias, pouco teve a oportunidade de fazer. Desde 1974, aliás, que viveu mal a questão africana. A única vez que o vi realmente perturbado foi, quando nesse ano, regressando de um pacato almoço na Baixa, foi violentamente interpelado na rua por ”retornados”. “Traidor” e “vende-pátrias” foram os epítetos mais brandos que ouviu. 

Creio que Soares não percebeu, nem se interessou por África. Ou antes, depressa percebeu que era um problema que não podia resolver. Queria simplesmente ver-se livre de África. Era Portugal que lhe interessava. Portugal, a Europa e a democracia. Ainda hoje vive mal com as recordações da descolonização. E chega a imaginar raciocínios desculpatórios ridículos. Ao saber, 20 anos depois, que emissários de Marcelo Caetano teriam tentado uma via negocial com os dirigentes do PAIGC, não se coíbe de procurar, nesse facto, uma fonte de legitimidade. “Afinal, o que aconteceu é que nós conseguimos negociar a paz, onde eles, os do antigo regime, falharam, embora tivessem tentado.” O argumento é fraco. Além de que, em 1974 e 1975, os portugueses não negociaram coisa nenhuma. 

 (In Revista "PÚBLICA" - 31 Agosto 1997)