Ernesto Augusto Melo Antunes, tenente-coronel e conselheiro da Revolução,
é, ao mesmo tempo, um dos homens mais conhecidos e um dos mais desconhecidos.
Porque Melo Antunes foi elevado à categoria de símbolo. E
de bode expiatório para os inimigos do processo da independência
das ex-colónias e para os anticomunistas de vários matizes
que não lhe perdoam ter vindo à Televisão em 25 de
Novembro dizer, no fundo, que em nome da democracia o PC não podia
ser eliminado. Foi Melo Antunes o teórico do “Grupo dos Nove”, opondo-se
ao projecto inegemónico do PCP e tentando, depois contrariar, no
plano internacional, a sua estratégia política. A direita
colou-se-lhe, então, por razões de ocasião, uma parte
da mesma direita que agora o ataca enquanto símbolo. E o PCP deixou
de o atacar por razões opostas.
António de Spínola critica-o duramente no “País Sem
Rumo” e diversos órgãos de Comunicação Social
não cessam também de o atacar. Sem conhecimento de causa.
Emocionalmente. A história do processo da descolonização
não foi, porém, feita até agora. Por isso mesmo o
EXPRESSO resolveu ouvir os intervenientes mais responsáveis por
ela ao nível das cúpulas políticas de então.
E não podia de deixar de ouvir Melo Antunes que continua a assumir
toda a sua actuação. Como parece não assumir, por
exemplo, Mário Soares que quisemos ouvir, mas não teve tempo
para nos receber. Esperamos, entretanto, a oportunidade prometida.
Pedimos, por isso, a Melo Antunes que
nos desse a sua versão de como correram as coisas, que se pronunciasse
sobre o livro do general António Spínola, que pensa do comportamento
de Mário Soares, de então e de agora e quais as suas relações
com o PCP.
Melo Antunes falou longamente da sua experiência e revelou alguns
episódios até agora pouco conhecidos e alguns mesmo inéditos,
entre eles, o encontro em Amesterdão entre ele próprio, Almeida
Santos e Óscar Monteiro da FRLIMO. Situa, também, o célebre
texto dactilografado que tanta admiração causaria no major
Casanova Ferreira, se entendermos ao que sobre o assunto disse o general
Spínola. E muito mais. A entrevista aí fica. Entrevista de
um político-militar que continua a gozar de vasta audiência
em diversos sectores do mundo africano. Uma entrevista que o EXPRESSO pensa
fará história. A que outrAs certamente se seguirão
– A. de C.
O meu silêncio não
significa arrependimento ou prudência
EXPRESSO – O tenente-coronel Melo Antunes
é um dos homens mais em foco no processo que levou à descolonização
de Moçambique. Um dos mais em foco e um dos mais atacados. Atacado
pela chamada direita e silenciado pela chamada esquerda.
Foi atacado recentemente pelo general
António de Spínola no livro “País Sem Rumo” e o próprio
Mário Soares secretário geral do PS, parece ter-se solidarizado
com as afirmações do ex-Governador da Guiné e primeiro
Presidente da República a seguir ao 25 de Abril. Já passou
muito tempo. Já vários livros foram publicados e o tenente-coronel
Melo Antunes tem-se mantido silencioso. Como interpretar tal silêncio?
Arrependimento ou prudência?
MELO ANTUNES – Sobre o processo
de descolonização levado a cabo após o 25 de Abril
muito se tem dito e escrito, em Portugal, em tais condições
de emotividade ou buscando efeitos políticos, partidários
ou sociais que quase sempre se tem adulterado a verdade histórica
ao ponto de desfigurar quase por completo esse capítulo fundamental
da nossa História que levou à independência de territórios
durante séculos submetidos à dominação colonial
portuguesa.
O meu silêncio perante os constantes e, por vezes, inqualificáveis
ataques de sectores bastante diferenciados da direita portuguesa ou de
grupos sociais com estreitos interesses ligados à antiga exploração
colonial (e que de um modo tão transparente, e frequentemente iníquo,
exploram justos sentimentos de saudade e de desgosto de tantos que viveram
nas colónias do seu honrado e penoso trabalho) – o meu silêncio
não significa, de modo algum, “arrependimento” ou “prudência”.
O que penso é que a “história da descolonização”só
poderá ser feita, em termos do mínimo rigor científico
exigível, em condições de muito maior serenidade,
numa atmosfera política muitíssimo mais distendida, quanto
à hermenêutica dos acontecimentos puder ser realizada com
a distanciação que permita uma visão mais lúcida
e global.
Até hoje, nesta matéria, não houve qualquer “investigação
histórica” digna desse nome. Quase todos aqueles que sobre a “descolonização”
têm escrito procuram atingir objectivos políticos conjunturais.
E, consoante as “modas” ou “oportunidades”, assim se fazem ouvir mais ou
menos, as vozes dos que por forma sistemática procuram destruir
a acção dos que tentaram em condições extremamente
difíceis, soluções simultaneamente patrióticas,
pragmáticas e progressistas (no sentido de se enquadrarem no movimento
universal de luta contra todas as formas de colonialismo) para o problema
da autodeterminação e independência dos antigos territórios
coloniais portugueses; dos que procuram, a todo o custo, alijar responsabilidades
e desviar a atenção da opinião pública sobre
um número muito restrito de “bodes expiatórios” (aos quais
tenho a honra de pertencer), tentando simultaneamente aparecer como “vítimas”
inocentes de cavilosas intrigas, “mártires” de não sei que
tenebrosas conspirações, alvos ingénuos e virginais
de horrendas e pérfidas traições; dos que ensaiam,
enfim – não se cansando jamais, jamais corando, das inúmeras
contradições com que parecem apostados em pautar a sua quota
de responsabilidade no processo histórico da descolonização,
por razões de mero eleitoralismo umas vezes, por razões de
conveniência política outras (quando os ventos parecem soprar
favoravelmente no sentido da condenação global da descolonização),
por razões enfim que, tendo a ver com o que disse antes, se resumem
no fundo a isto: necessidade que alguns sentem de “redourar o seu brazão”,
isto é, pintar de fresco uma imagem que, por motivos diversos está
profundamente deteriorada na opinião pública.
Ora bem, o livro do general António de Spínola pertence a
um “género” que integra algumas das “espécies” que rapidamente
antes esbocei, pelo menos no que toca às passagens respeitantes
à descolonização – em particular aquelas em que sou
focado, porquanto foram essas que examinei com mais cuidado.
Quanto à “solidariedade” manifestada por Mário Soares, direi
por enquanto apenas que lamento desde já duas coisas: a primeira
é que um homem que, em tantas ocasiões, antes e depois do
25 de Abri, manifestou ser possuidor de incontestável coragem política,
se tenha obrigado a fazer o elogio do livro e da figura do general Spínola,
conhecendo ele tão bem como eu, pelo menos, quais os verdadeiros
projectos do general quanto à descolonização (e que
o próprio Mário Soares, então, criticava, em nome
dos princípios socialistas e da luta anticolonial); a segunda é
que Mário Soares tenha chegado ao ponto de invocar o livro para
“cobrir” a sua acção nas negociações do Alvor,
invocando a autoridade do autor de “País Sem Rumo” para fazer a
“demonstração” do seu discreto papel na descolonização
de Angola, por um lado, e da sua relevante e patriótica intervenção
nas negociações com a FRELIMO, por outro lado.
Reflectindo sobre esta questão,
hesito em classificar esta, para mim mais do que surpreendente, atitude
de Mário Soares.
A inviabilidade do projecto
de Spínola
EXP. – Que a descolonização
deveria ter sido desta ou daquela maneira ouve dizer-se e escrever-se com
frequência. Acha que poderia ter sido de maneira diferente?
M.A. – Poderia, talvez, ter sido de maneira
diferente. Inclusivamente, poderia ter sido tentada de acordo com as ideias
do general Spínola.
Simplesmente, para que isso tivesse acontecido,
teria sido necessário que a própria revolução
tivesse tido uma natureza diferente. Quer isto dizer que o “25 de Abril”
se tivesse limitado a um mero “pronunciamento militar”, a um simples “golpe
de Estado” que, derrubando o governo e algumas das principais instituições
do fascismo, levasse ao poder o conjunto de generais, com Spínola
à frente, interessado em mudar no regime aquilo que permitisse a
transferência efectiva do poder de uma secção ou parcela
da classe dominante para outra secção (aspirando a certas
formas de democratização e modernização no
regime, condição fundamental para o pleno desenvolvimento
dos seus projectos de capitalismo avançado) – se o “25 de Abril”
se tivesse resumido a isto tão esquematicamente delineado, sem qualquer
dúvida que Spínola poderia ter beneficiado das condições
políticas necessárias para pôr em prática o
seu projecto descolonizador, já esboçado no seu livro “Portugal
e o Futuro” e que, no essencial, apontava para uma comunidade de expressão
lusíada, composta por uma federação de Estados aos
quais se reconhecia, em grau maior ou menor, o acesso a certas formas de
independência.
Aconteceu, porém, o seguinte: primeiro, o projecto de Spínola
vinha com um atraso de mais de 13 anos (admitindo, sem discutir, que antes
de eclodirem as guerras tal projecto poderia ter sido posto em prática),
não tendo em consideração o factor capital do desencadeamento
das lutas armadas de libertação nacional em Angola, Moçambique
e Guiné que fizeram mudar perfeitamente a natureza das relações
políticas, sociais, culturais e humanas entre Portugal e as suas
colónias; em segundo lugar, o golpe militar de “25 de Abril” transformou-se
em poucas horas numa autêntica “revolução popular”,
com uma dinâmica interna que ninguém estaria em condições
de prever e que condicionou de tal forma as decisões dos responsáveis
políticos da época, nos meses que se seguiram ao “25 de Abril”
que bem podemos já hoje afirmar que o processo histórico
da descolonização faz parte integrante do processo histórico
da liquidação e, paralelamente, edificação,
contraditória embora, de um novo estado democrático em Portugal.
Digamos que o mesmo impulso revolucionário, gerado no seio de um
povo oprimido e explorado durante perto de 50 anos, criou as condições
políticas únicas e específicas que levaram, não
só ao derrube das estruturas do fascismo e ao começo de um
novo ciclo histórico, como, conduziram o poder político a
abandonar uma postura ambígua perante o problema colonial e a reconhecer
o direito dos povos à autodeterminação e independência
(discurso do general Spínola de 27 de Julho de 1974 e Lei 7/74),
abrindo-se a possibilidade de uma negociação até
aí bloqueada; em terceiro lugar, levar por diante o projecto de
Spínola que comportava a chamada consulta por referendo, contra
o curso da história, as esperanças suscitadas em toda a comunidade
internacional e sobretudo, contra a vontade nacional que se manifestava
de forma inequívoca de mil maneiras, significava pura e simplesmente
a continuação de guerra: os movimentos de libertação
não aceitavam obviamente que a sua legitimidade, conquistada por
via revolucionária e pela luta armada no campo de batalha, viesse
a ser posta em causa através de um instrumento, não só
de impossível aplicação prática mas sobretudo
a realizar em territórios cujas populações continuavam
enquadradas pela mesma administração colonial e com a presença,
por toda a parte, de tropas portuguesas. O referendo era, portanto, uma
utopia e uma utopia perigosa nas condições então existentes.
Mas, ao contrário do que pretende Spínola, não foram
as tropas portuguesas que, segundo ele, recusando-se a combater ou negando-se
a cumprir mais qualquer missão, tornaram o seu tão acarinhado
projecto impossível. O general Spínola, fiel ao seu mítico
ideal de um exército colocado exteriormente e acima do povo – no
fundo imbuído dos ideais elitistas dos exércitos prussianos
que nada têm a ver, nem nunca tiveram nada de comum com os exércitos
nacionais de países como Portugal (mas isto é outra história
que nos levaria muito mais longe) – considera-se traído, não
só por políticos, militares e pelo MFA, como também,
e sobretudo, pelas Forças Armadas que não teriam garantido,
no terreno, as condições necessárias, ao desenvolvimento
da sua política. Ora traição só existe na verdade
na sua imaginação exaltada, povoada de fantasmas de outras
épocas e outras latitudes, obcecada por esquemas políticos
rígidos (e que, de resto, nem no essencial eram originariamente
da sua autoria…). O Exército, na generalidade, e salvo casos excepcionais
que em todas as épocas e em semelhantes circunstâncias sempre
se verificaram, portou-se com a dignidade, a coragem e espírito
de missão que a situação exigia. O que se passou,
porém, é que as Forças Armadas não podiam,
por impossibilidade histórica, psicológica e política
ficar imunes ao grande movimento colectivo que transformava Portugal. Pretender
que o exército agisse contra o processo de transformação
que sacudia a Nação é não entender, por preconceito
ideológico ou má-fé, (a menos que se trate de pura
ignorância) que tinha sido o exército a iniciar o processo
revolucionário, libertando forças sociais e políticas
que identificando-se com o acto libertador, não se mostravam dispostas
a pactuar com os desígnios, declarados ou ocultos, das forças
e personalidades que pretendiam controlar a revolução e canalizá-la
a seu favor; é não entender também que o Exército
português era, e é, mais do que nenhum outro da Europa, por
razões da história e cultura nacional, das características
específicas da nossa formação social e económica,
da tradição militar portuguesa, um exército de povo,
um exército no qual, mau grado as incidências elitistas, os
elementos de articulação ao povo são muito fortes
e determinantes, não sendo por isso de admirar que uma revolução
que tão profundamente abalou as estruturas da sociedade portuguesa
arrastasse consigo, esmagadoramente, o Exército.
Isto não explica, nem desculpa, erros capitais cometidos em Portugal
por certos sectores das Forças Armadas e certos grupos políticos
anarquizantes. Quando, por exemplo, se gritava em comícios e em
manifestações de rua, palavras de ordem tão irresponsáveis
e imbecis como por exemplo “nem mais um soldado para as colónias”,
pretendia-se não só criar, internamente, uma situação
de caos político que favorecesse a implantação de
um projecto esquerdista, como conduzir à desmoralização
completa das tropas cuja principal missão era, nos territórios
a descolonizar, garantir uma transição pacífica para
a independência, o que supunha um empenhamento activo no cumprimento
rigoroso dos acordos com os movimentos de libertação, uma
defesa intransigente de pessoas e bens, a oposição frontal
às tentativas oportunistas de personalidades e grupos políticos
fantoches de fazer reverter o processo em seu favor. Impunha-se ainda uma
coordenação fraterna com as autoridades militares dos novos
países por forma a facilitar-lhes a tarefa de controlo e defesa
dos territórios.
Nem tudo,
neste como noutros capítulos da descolonização, se
passou na prática como se pretendia. Mas nunca ao Exército,
nem à sua honra se podem assacar as culpas principais, como – ia
a dizer vergonhosamente mas, no fundo , por completa incapacidade de compreender
– o faz o general Spínola no seu livro.
Qual o papel do Dr. Mário
Soares
EXP. – Segundo o general Spínola
no livro supracitado os primeiros contactos com a FRELIMO foram realizados
pelo Dr. Mário Soares (ministro dos negócios estrangeiros),
pelo Dr. Manuel Sá Machado do mesmo Ministério, pelo major
Otelo Saraiva de Carvalho na qualidade de representante do MFA central
e pelo tenente-coronel Nuno Lousada, como representante do MFA.
“Neste primeiro contacto, diz o general
Spínola, Saraiva de Carvalho sobrepondo-se ao ministro dos Negócios
estrangeiros, advogou a entrega, sem condições, de Moçambique
à FRELIMO”…
Resulta deste texto e de outros
de semelhante teor que Mário Soares não estava de acordo
com a linha do MFA para a descolonização. Qual seria então
o pensamento e a actuação do Dr. Mário Soares? Teve
com ele divergências acerca da forma de conduzir os acontecimentos?
Mário Soares vem afirmando que é fundamentalmente certo o
que Spínola escreve.
M. A. – Antes de responder à sua
pergunta deixe-me dizer-lhe – em jeito de questão prévia
fundamental relativa a todas as questões que quiser pôr-me
– que por agora apenas revelarei dos factos que com ela possam estar relacionados
aquilo que julgue não ser, ainda hoje, do domínio reservado
e confidencial dos negócios de Estado. Eu sei que a sua pergunta
tem a ver com afirmações contidas num livro em que tal critério
não foi observado. Tal não me levará, porém,
a contrariar uma prática legítima e universalmente respeitada
e que, em nome de razões opostas, tem sido, com grande leviandade,
posta em causa entre nós.
Mas vamos à resposta.
As primeiras negociações com a FRELIMO iniciaram-se, efectivamente,
em Lusaka, nos primeiros dias de Junho de 1974, sendo a delegação
portuguesa chefiada por Mário Soares. O encontro e as negociações
com a FRELIMO abrem-se com o célebre abraço de Mário
Soares a Samora Machel, rompendo todas as regras do protocolo, como então
foi dito e repetido. Este gesto era revelador (pelo menos assim foi interpretado
na altura por mim próprio e por muitos sectores progressistas, militares
e civis) de um espírito de generosa abertura e fraternidade, de
uma franca disposição de ultrapassar com rapidez as enormes
dificuldades de um processo naturalmente completo como era o da descolonização
de Moçambique. A capacidade de negociação de Mário
Soares era, no entanto, muito limitada. Na prática, o seu mandato
consistia em tentar obter da FRELIMO um rápido, se possível
imediato, “cessar fogo”, sem poder, em troca, conceder à FRELIMO
mais do que vagas promessas de respeito pelo princípio da autodeterminação.
Dir-se-ia que Spínola, ao enviar Mário Soares a Lusaka, não
tinha feito mais de que tentar ganhar tempo com uma manobra dilatória
que não poderia deixar de ser interpretada pelo FRELIMO, com alguma
razoabilidade e sem qualquer proveito para Portugal, como a um compasso
de espera necessário à organização de formas
políticas fantoches em Moçambique que aparecessem oportunamente
no tabuleiro a reclamar representatividade no diálogo com Portugal;
e, simultaneamente, ao enfraquecimento do ardor combativo das forças
guerrilheiras, naturalmente desejosas também de uma paz rápida,
mas justa.
Desta reunião de Lusaka nada resultou de positivo, a não
ser um conhecimento mais exacto das posições da FRELIMO e
a promessa da delegação portuguesa de voltar a contactar
depois de estudo ponderado da situação, em Portugal.
E é importante referir aqui que, após este encontro em Lusaka,
a FRELIMO intensifica o esforço de luta armada em diversas zonas
de Moçambique, provocando uma certa desorientação
em meios políticos e militares portugueses que com dificuldade entendiam
que esta era a única resposta possível da FRELIMO ao que
ela interpretava ser a manobra de Spínola e o trunfo maior que podia
jogar para manter o espaço de negociação em ulteriores
contactos.
As nossas tropas, desejosas de alcançar uma paz honrosa limitavam-se
a responder aos ataques da FRELIMO, a tentar garantir a liberdade de circulação
nas vias de comunicação e a proteger as populações
civis, abstendo-se de operações ofensivas, em obediência
de resto a instruções superiores oriundas de Lisboa, transmitidas
pelo general Costa Gomes, com a plena concordância do general Spínola.
Das posições defendidas por Mário Soares nessa época,
não posso concluir que defendesse um conceito de descolonização
diferente do que prevalecia nas estruturas dirigentes do MFA. O que aconteceu
em concreto, foi que Mário Soares não tinha mandato para
ir mais longe nas conversações com a FRELIMO. Mas é
inegável que as consequências políticas deste encontro
de Lusaka são fundamentais para o processo que internamente se desenvolveu
em Portugal, até ao discurso de Spínola de 27 de Julho de
1974 e à lei 7/74, de 26 de Julho. Efectivamente o que a delegação
trouxe de Lusaka foi a ideia mestra que o prosseguimento das conversações
com a FRELIMO exigia de Portugal três coisas: o reconhecimento do
direito do povo moçambicano à independência completa
e total; a aceitação do princípio da transferência
da soberania exercida por Portugal às instituições
representativas do povo moçambicano, isto é, à FRELIMO;
o reconhecimento da FRELIMO como legítimo representante do povo
moçambicano. Estas eram, na realidade, as condições
postas à delegação portuguesa para o prosseguimento
das negociações.
Foi, por isso, nos quase dois meses que se seguiram ao encontro de 5 a
6 de Junho em Lusaka, o debate aceso em torno destas questões fulcrais,
a nível de várias instâncias do poder que, a par dos
acontecimentos registados em Portugal e nas colónias, determinando
uma aceleração inusitada do processo histórico, acabou
por conduzir à Lei 7/74 e ao discurso de 27 de Julho do general
Spínola (que curiosamente não figura entre os documentos
publicados em anexo ao “País sem Rumo”…). É durante este
período que as mais acesas controvérsias têm lugar,
acabando Spínola por aceitar a prevalência das teses do MFA
sobre as suas próprias teses.
E não me recordo de ter visto nessa altura M. Soares manifestar-se
em oposição ao MFA.
Spínola queria
um protocolo secreto com a FRELIMO
EXP. – O general Spínola acusa
Melo Antunes, então ministro sem Pasta, de se haver deslocado a
Dar-es-Salam sem o seu conhecimento e sem que tal deslocação
tivesse sido concertada com os ministros dos Negócios Estrangeiros
e da Coordenação Interterritorial. Acrescenta que o propósito
de Melo Antunes era estabelecer um plano de entrega de Moçambique
à FRELIMO.
Foi assim que se passaram os factos?
M.A. – É inteiramente falsa, para
começar, a afirmação que me desloquei a Dar-es-Salam
sem o conhecimento do então Presidente da República.
As acusações que Spínola
me faz constituem uma montagem extraordinariamente grosseira de alguns
factos reais, o primeiro dos quais é a minha deslocação
a Dar-es-Salam em fins de Julho de 1974.
Procurarei descrever o mais sinteticamente possível o que então
se passou.
Depois do encontro de Lusaka a que já fizemos larga referência
e no mais aceso do debate travado em torno dos princípios que haveriam
de regular o prosseguimento das negociações com a FRELIMO
(e que obviamente iriam repercutir-se nas negociações para
a independência de Angola), desloquei-me com Almeida Santos e a convite
deste, a Amesterdão, para um encontro que permaneceu secreto com
Óscar Monteiro, membro proeminente da FRELIMO. Esta deslocação
tinha em vista, em face do relativo malogro das conversações
de Lusaka, assentar com a FRELIMO a metodologia mais conveniente para a
manutenção dos contactos, tendo-se chegado à conclusão
que deveriam evitar-se mais encontros formais do tipo do “encontro de Lusaka”,
enquanto não se tivesse avançado na remoção
dos obstáculos que permaneciam após aquele encontro. Foi,
assim, reconhecida a conveniência de, logo que a parte portuguesa
estivesse em condições de avançar com propostas concretas,
sobre as quais se pudesse estabelecer um diálogo positivo, se combinaria
novo encontro secreto, a fim de evitar que se dele não resultasse
nada de concreto, a publicidade dada às posições de
ambas as partes limitasse de maneira fatal a sua capacidade de negociação,
comprometendo seriamente a continuação do diálogo.
Deste encontro de Amesterdão foi dado conhecimento completo ao general
Spínola. E quando, decidido o discurso de 27 de Julho e aprovada
a lei 7/74 se verificou estarem reunidas as condições políticas
mínimas para o prosseguimento do diálogo com a FRELIMO, foi
formalmente deliberada a minha ida a Dar-es-Salam, com plena concordância
do general Spínola, general Costa Gomes (que na mesma altura fez
a proposta da minha nomeação para Alto-Comissário
em Moçambique, proposta que foi aceite) e primeiro-ministro Vasco
Gonçalves e, pelo menos, o conhecimento e acordo do Dr. Almeida
Santos e Dr. Mário Soares.
Propus, então, que me acompanhasse na missão o comandante
Almeida e Costa, representante em Lisboa do MFA de Moçambique e
que nessa qualidade seguia atentamente o evoluir da situação,
proposta que foi aceite. Antes de partir tive uma conversa com o general
Spínola durante a qual foram acordados os termos em que deveria,
nesta fase preliminar, negociar com a representação da FRELIMO.
Assim e de harmonia com o discurso de 27 de Julho e a lei 7/74, deveríamos
considerar como adquiridos e, portanto, aceites por Portugal, dois dos
três princípios já referidos: o reconhecimento do direito
do povo de Moçambique à independência; o princípio
da transferência de poderes para a FRELIMO. Quanto ao reconhecimento
da FRELIMO, o general Spínola adiantou a ideia da assinatura de
um protocolo secreto no qual aquele movimento seria reconhecido como representante
legítimo do povo de Moçambique, sem prejuízo das negociações
que se seguiram com a FRELIMO (erigida, assim, e de facto, em interlocutor
único) com vista à transferência de poderes.
A insistência do general Spínola
na questão do segredo do protocolo reconhecendo a FRELIMO baseava-se
nos seguintes argumentos: impedir a África do Sul e a Rodésia
de contestarem, no plano internacional , a legitimidade de tal representatividade,
tirando partido de “preconceitos democráticos burgueses” do Ocidente,
o que nos criaria dificuldades na Europa; impedir a África do Sul
e a Rodésia de utilizarem o pretexto formal da ilegitimidade para
intervirem militarmente em Moçambique, tentando concretizar o velho
sonho colonialista de cortar Moçambique em dois pela Zambézia
provavelmente; e retirar às minorias racistas e colonialistas de
Moçambique, bem como aos sectores mais reaccionários em Portugal,
o argumento da “traição” pela “rendição e entrega
vergonhosa”, o que poderia levantar em Moçambique sérios
problemas de ordem pública e em Portugal graves dificuldades políticas.
Foi com este mandato precioso que parti com o comandante Almeida e Costa
para Dar-es-Salam. Nesta cidade decorreram, entre 30/7/74 e 2/2/74, as
difíceis conversações entre a delegação
portuguesa e a delegação da FRELIMO que conduziram à
elaboração de um documento contendo os conceitos básicos
e as linhas mestras do acordo a negociar, formalmente, caso Portugal concordasse
em que este documento era uma base de partida aceitável para a continuação
do diálogo. Uma vez que este encontro de Dar-es-Salam havia permanecido
secreto, mantinha-se a margem de negociação de ambas as partes,
caso Portugal viesse a considerar inaceitável a posição
de partida de Dar-es-Salam.
Regressado
a Portugal, dirigi-me imediatamente com Almeida Santos, de helicóptero,
ao Buçaco, onde se encontrava o Presidente da República.
Entreguei o documento ao general e expliquei-lhe detalhadamente a forma
como tinham corrido as conversações e as principais dificuldades
encontradas e que, no fundamental, eram as seguintes: a questão
do não reconhecimento público da FRELIMO; e, quanto ao mecanismo
de transferência de poderes, o problema da composição
do Governo de transição. O Presidente da República
não reagiu desfavoravelmente ao documento que lhe foi apresentado,
nem fez qualquer comentário negativo às explicações
suplementares que lhe forneci. Mais. O Presidente da República dá
o seu pleno acordo para que se façam os preparativos necessários
à constituição de uma delegação portuguesa
que, no mais curto prazo de tempo, se deslocaria a Dar-es-Salam, a fim
de prosseguir, agora a “céu aberto” e, portanto, formalmente, as
negociações com a FRELIMO, partindo das bases provisórias
contidas no documento de que lhe fiz entrega.
É esse documento que o general chama agora hipócrita e despudoradamente
um plano de entrega de Moçambique à FRELIMO. Por aqui se
pode avaliar da seriedade política, intelectual e moral do autor
do “País sem Rumo”.
Discutido, pois, o documento, já no âmbito da Comissão
Nacional de Descolonização, constitui-se a delegação
portuguesa que, em 15 e 16 de Agosto seguintes, continua em Dar-es-Salam
a discussão com a FRELIMO, procurando então formalizar
os seguintes objectivos, já por mim defendidos e pelo com. Almeida
e Costa no 1º encontro de Dar-es-Salam: obter uma composição
do Governo de transição e uma definição de
competências (do Alto-Comissário e do Governo) que evitasse
a Portugal ficar em posição desvantajosa e desprestigiante
no período de transição: obter a máxima garantia
para os interesses legítimos dos portugueses residentes em Moçambique,
sobretudo para aqueles que lá desejassem continuar a viver após
a independência: lançar as bases políticas e jurídicas
das futuras relações Portugal-Moçambique, no quadro
de uma cooperação marcada pela fraternidade, o respeito pelos
interesses mútuos, a igualdade, a não ingerência nos
assuntos internos de cada país, o reconhecimento do factor linguístico
como laço permanente e privilegiado das relações entre
os dois países e elemento de importância capital no incremento
futuro da cooperação cultural, técnica e científica
e económica; os problemas decorrentes do cessar-fogo e a cooperação
militar.
Foi com este espírito que participei nesta 2ª reunião
de Dar-es-Salam, procurando o desenvolvimento de princípios já
adquiridos na 1ª reunião, e constantes do documento já
referido.
Almeida Santos tem nesta segunda reunião uma intervenção
muito importante, a dois níveis: dando forma jurídica ao
acordo, à medida que se chegava a entendimento sobre cada questão
concreta; contribuindo largamente para a criação de uma atmosfera
distendida e propícia ao diálogo.
Mário Soares participou largamente nos debates, inteiramente integrado
no espírito do documento que serviu de base a esta 2ª reunião
de Dar-es-Salam.
Reportando-me ao livro de Spínola e na sequência desta mesma
questão, é verdade que tive um encontro com Nyerere a pedido
deste após a minha chegada a Dar-es-Salam. Considerei natural o
pedido, dado a forma como tinham decorrido os nossos anteriores contactos.
Nyerere, porém, não tentou interferir nas negociações.
Naturalmente que estava vivamente interessado em acompanhá-las,
mas nunca fez qualquer pressão inaceitável. Recomendou sempre
compreensão e espírito de abertura, chamando a atenção
da importância que aquelas conversações tinham para
a África e para o Mundo, bem como para o processo geral de libertação
dos povos colonizados. O seu interesse em falar comigo resultava também
da necessidade de confrontar ideias sobre questões de política
geral relativas à África (e dos problemas decorrentes das
relações África-Europa); de questões ligadas
ao desenvolvimento dos países pobres de África (e a Tanzânia
é um deles), de questões sobre a paz e segurança internacionais.
Dir-se-á que eram problemas da competência do ministro dos
Negócios Estrangeiros. Inteiramente de acordo. Simplesmente, Nyerere
não me ouviu enquanto representante de Portugal nos encontros que
tivemos. Falámos, sim, como dois cidadãos com idênticas
e públicas preocupações e, em muitos aspectos, com
ópticas semelhantes sobre vários problemas concretos respeitantes
à ordem internacional existente. Quando muito, o que Nyerere via
em mim seria o representante de uma revolução que tinha tido
um enorme impacto em todo o mundo e que se enchia de prestígio à
medida que se tornava clara a boa-fé e a sinceridade com que se
procedia à democratização e descolonização.
Não houve, portanto, ultrapassagem de ninguém. E se alguém
tivesse, nessa altura, considerado que a minha atitude era menos correcta
e mais límpida, deveria ter-me dito e discutido comigo, pois sempre
foi traço característico dos meus métodos de trabalho,
a transparência de atitudes e a lealdade nas relações.
Pena é que aqueles que fundamentalmente ou não, têm
motivos de queixa ou de crítica, não o manifestem no tempo
e no lugar próprios, preferindo, ao que parece, a insinuação
ou a denúncia como meios privilegiados de, conjuntural e oportunisticamente,
fazer realçar os seus próprios méritos e virtudes.
Foi assim que procederam, sejam eles quem forem e a dar-se credibilidade
ao que diz o general Spínola, aqueles que depois do regresso de
Dar-es-Salam “informaram” o Presidente da República dos meus encontros
com Nyerere e dos meus supostos contactos com a FRELIMO “sem conhecimento
dos outros membros da delegação portuguesa”.
Quanto a esta última “acusação”, de extrema gravidade
pelas suspeitas que levanta (e que, de resto são claramente expressas
poucas linhas adiante no livro de Spínola), ela é inteiramente
descabida e falsa. Não houve encontros formais entre mim e a delegação
da FRELIMO, antes das conversações oficiais. Encontrei elementos
da delegação da FRELIMO com quem conversei, nomeadamente
no hotel onde nos instalámos, sem discutir nenhum aspecto substancial
das negociações em curso. Trocaram-se impressões muito
gerais, tal como estou convencido que aconteceu aos outros membros da delegação
portuguesa, sem que tal me parecesse estranho ou suspeito. Só posso
dizer, para finalizar, que toda essa “construção” é
inteiramente revoltante e infamante.
O famoso texto dactilografado
e a intervenção de Casanova Ferreira
EXP. – Ainda no mesmo livro e como pano
de fundo de aliado da FRELIMO contra os interesses portugueses, António
de Spínola atribui a Melo Antunes a entrega de um texto dactilografado
antes da partida para a Zâmbia em 4 de Setembro de 1974. Desse texto
constariam as cláusulas do acordo com a FRELIMO, o que teria levado
o major Casanova Ferreira a dizer a Mário Soares e Almeida Santos
que, perante tais condições não valeria a pena irem
a Lusaka.
Qual o sentido deste gesto se é
que existiu?
M.A. – O “texto dactilografado” a que
se refere o general era, pura e simplesmente e no fundamental o projecto
de acordo que havia sido elaborado em Dar-es-Salam e que constituía
a base das negociações finais de Lusaka, visto não
serem previsíveis grandes alterações ao que já
havia sido negociado. Esse texto foi discutido em Lisboa com o general
Spínola, no âmbito da Comissão Nacional de Descolonização
e, depois de aprovado no essencial, dele foi necessário fazer o
número de cópias suficientes para todos os membros da delegação
portuguesa, nomeadamente para o major Casanova Ferreira que à última
hora, e sem qualquer razão visível, por designação
expressa de Spínola, integraria a delegação portuguesa.
Do documento, já discutido e aprovado, foram tiradas cópias
apenas na véspera do embarque da delegação, por razões
que têm apenas a ver com a sequência dos acontecimentos e a
falta material de tempo para proceder doutra maneira. Daí a sua
distribuição no aeroporto. Mas o importante é que
os membros activos da delegação tinham pleno conhecimento
dele, uma vez que era o resultado do seu próprio trabalho. Se o
major Casanova Ferreira produziu o comentário a que se refere, isso
só evidencia o carácter anómalo da sua presença
na delegação e o desconhecimento da “história” de
todas as conversações. Se lhe foi respondido como se diz
no livro que “apesar de tudo iriam modificar as condições
expressas no referido texto”, é uma vez mais lamentável porque
era perfeitamente sabido que os problemas de fundo estavam discutidos e
aceites as condições essenciais do acordo, se bem que alguns
pormenores, nomeadamente ao nível da linguagem e, de qualquer modo,
relativamente secundários, poderiam ser melhorados. Em todo o caso,
o que em Lusaka iria ser discutido de importante já não era
o texto final do acordo de cessar-fogo, cujas cláusulas eram fundamentais
para o enquadramento político-militar e jurídico da fase
de transição.
Foi, efectivamente, o que veio a passar-se, não com o “significativo
silêncio do major Melo Antunes e do comandante Vítor Crespo”,
mas sim com a sua participação activa num honroso acordo.
Desconheço se os “dois ministros” a que se faz referência
no livro teriam do general Spínola “prescrições” (para
reproduzir o pitoresco termo que o autor utiliza) especiais a cumprir.
E não me dei conta de nenhum comportamento particularmente notável
e que mereça, passados estes anos, uma tão singular e espectacular
referência a Mário Soares e Almeida Santos pela forma como
“se bateram”. Que eu saiba não houve “heróis”. E ainda
mais ignorava que alguém se julgasse merecedor dos elogios do general
Spínola no contexto das conversações de Lusaka.
Seria útil que
o Secretário Geral do PS se explicasse em definitivo
EXP. – Acompanhámos de
perto os Acordos do Alvor e pareceu-nos na altura que Mário Soares
havia desempenhado um papel preponderante, embora, o MFA não ficasse
em segundo plano. No entanto, recentes declarações dão-nos
a entender o contrário, como se o PS se envergonhasse da descolonização
(a afirmação é minha). Por uma questão de fidelidade
à História que será escrita gostava que se referisse
ao papel então desempenhado pelo Dr. Mário Soares.
M.A. – Em primeiro lugar desejaria
esclarecer o seguinte. Mantenho, de há muito, com Mário Soares
boas relações pessoais explicáveis por um respeito
e consideração que suponho recíprocos. A qualidade
das relações pessoais não tem, porém, nada
a ver com a possibilidade de, em muitos campos, se poder estar em desacordo,
manifestável até com recurso a alguma veemência quando
tal for justo e necessário. Tal não envolve que deixe, entretanto,
de ter em mente, a necessidade de controlar a emoção naturalmente
decorrente de atitudes tão injustas quanto inesperadas, de tal modo
que o que é apenas reposição de factos e emissão
de juízos críticos não se veja reconvertido – como
vai sendo moda na nossa terra – em arma de desbragado aviltamento de pessoas,
das posições que detém, das missões que servem
ou serviram. Por mim não desejo prestar esse serviço aos
diversos peritos e agentes da maledicência e do mexerico nacionais;
mas também não se me peça que em nome dos “princípios”
esqueça o que, à absoluta revelia deles, foi escrito, dito,
insinuado ou consentido, principalmente quando se trata de homens com pesadas
responsabilidades políticas.
Nesta perspectiva, encaremos a questão que me põe.
Sempre considerei – até recentes declarações do visado
que a si próprio atribui uma “discreta” actuação –
que o papel de Mário Soares nos acordos do Alvor teria sido importante.
Ele não chefiava a delegação portuguesa mas teve,
na qualidade de ministro dos Negócios Estrangeiro, não só
à mesa das negociações como nas conversações
de “corredor”, uma participação activa e cujo peso específico
me parecia indiscutível.
Ora, em face das campanhas em curso contra a descolonização
e reagindo a declarações de Savimbi, ou a ele atribuídas,
na sequência de um encontro daquele dirigente da UNITA com personalidades
portuguesas confessadamente envolvidas em intrigantes e equívocas
diligências políticas contra a República Popular de
Angola e o seu Governo e que tão gravemente prejudicam o interesse
nacional, é, no mínimo, estranho que Mário Soares
procure defender-se, e tão debilmente, ao reservar-se um papel discreto
nas negociações do Alvor embora acrescentando que sempre
pautou a sua actividade pela defesa dos interesses dos portugueses, etc.
(cito de cor).
O que, porém considero mais grave é que alguém se
reclame da “autoridade” de Spínola, ao referir “País sem
Rumo” como um livro que “fala por si”.
As apreciações laudatórias que Spínola faz
de Mário Soares são inseparáveis das condenações
que o autor do livro faz de outras personagens, incluindo eu próprio.
Donde terá forçosamente de se concluir que M. Soares está
de acordo não só com os elogios que Spínola lhe tece
(o que seria o menos), mas, fundamentalmente, com a interpretação
que Spínola faz dos acontecimentos e com a condenação
que o mesmo faz recair sobre os outros intervenientes nos mesmos acontecimentos.
E não basta, para o desmentir, uma simples frase de conteúdo
abstracto, em que afirma estar em frontal desacordo com “apreciações
de acontecimentos e pessoas” feitas pelo general. É uma posição,
a meu ver contraditória com as posições definidas
durante o próprio processo de descolonização, em que,
como ministro dos Negócios Estrangeiros, acabou por defender os
pontos de vista e as orientações que vieram a prevalecer
– únicos de resto que tinham audiência no plano internacional
e ele tinha consciência disso. E esta atitude de M. Soares traduziu-se
não só nas posições assumidas como ministro
como também nas inúmeras ocasiões em que claramente
entendeu dever manifestar o seu apoio e encorajamento à luta política
travada pelo MFA, nomeadamente no plano da descolonização.
Luta que, como se sabe e me parece ter ficado bem saliente no decorrer
desta entrevista, se travou em grande parte contra Spínola e as
suas concepções. Concepções por um lado ultrapassadas
e inexequíveis, por outro lado revelando uma ideia de história,
porventura sinceramente assumida, mas que tentava reproduzir, em novos
moldes, o sistema de denominação colonial e imperial.
Em face destas contradições, seria extremamente útil
que o secretário-geral do Partido Socialista Português se
explicasse, em definitivo, perante o fenómeno histórico das
lutas de libertação dos povos submetidos ao domínio
colonial. Saberíamos o alcance que para ele tem o fenómeno
do acesso à independência das antigas colónias portuguesas
e o fim do ciclo do império na história pátria; saberíamos
como se define perante os cálculos políticos da direita portuguesa
que cada vez mais ferozmente se lança contra a descolonização
e os seus principais responsáveis; saberíamos, enfim, se
concorda ou não com Spínola nos seus injustos e levianos
ataques às Forças Armadas Portuguesas (arvorando-se, ao mesmo
tempo, em defensor das “forças políticas” que, em seu entender,
não seriam senão as vítimas inocentes dos “desvarios”
revolucionários do 25 de Abril).
E é tanto mais importante saber o que pensam os responsáveis
do Partido Socialista sobre estas questões. Quanto à política
da Internacional Socialista é avaliada em Portugal e pelos portugueses
em geral (assim como em boa parte de África, sobretudo na de “expressão
portuguesa”) mais pelas atitudes e o discurso político dos responsáveis
portugueses do que pelo que faz ou deixa de fazer o Sr. Willy Brandt, por
exemplo.
Uma última observação. Se o livro de Spínola
(talvez “malgré lui”, mas sem sombra de dúvida obedecendo
às intenções dos que o estimularam e lhe guiaram a
mão…) constituiu, até certo ponto, uma “luz verde” para que
a ofensiva contra a descolonização começasse em grande
estilo e envolvendo até uma “inteligentzia” pouco suspeita à
primeira vista, de reaccionarismo (vide o triste artigo de António
José Saraiva no “Diário de Notícias” e o delirante
editorial que se lhe seguiu n`”A Capital” de Francisco de Sousa Tavares),
foram as posições políticas, por acção
ou abstenção, de alguns políticos de esquerda, que
“autorizaram” a ofensiva e forneceram a criação de uma atmosfera
geral de intoxicação e desorientação propícia
à aceitação das teses mais retrógradas e perigosas
para o próprio desenvolvimento dos ideais democráticos e
progressistas em Portugal.
Foi diminuta a participação
do PC no processo de descolonização
EXP. – Melo Antunes é acusado
pela direita de se haver conluiado com o Partido Comunista Português,
para aquilo que chamam a entrega do Ultramar.
Qual, na realidade o papel do
Partido Comunista no processo da descolonização?
M.A. – O que teria sido o “conluio”
entre mim e o PCP está bem patente na história do período
mais agudo da revolução portuguesa, o Verão de 1975,
e o papel que nesse período desempenhei.
Não se perdoa, nem à esquerda nem à direita, a minha
independência política e a coerência que procurei imprimir,
desde o princípio, a toda a minha actividade política. Sei
disso muito bem, mas não serão as incompreensões (
e muito menos os ataques, as calúnias ou as intrigas) que me farão
desviar um milímetro da minha firme determinação de
lutar pelas minhas ideias com total independência de juízo,
sentido crítico, coerência política e a constante preocupação
de não perder a dimensão ética de toda a acção
humana.
Sei, também, que muitas das minhas ideias (todas elas de resto)
são discutíveis e passíveis de crítica e estive
sempre (como estarei sempre) aberto ao diálogo livre e democrático.
Sou antidogmático e anti-sectário por natureza e convicção
e por isso susceptível de evoluir. Mas só aceitarei a evolução
num quadro de debate democrático e não de um clima de violência
verbal ou física, numa atmosfera social e política inquinada
pelas manipulações demolidoras de personalidades e as campanhas
deformadoras da realidade.
Vem tudo isto a propósito da pergunta que me fez.
E vem a propósito lembrar que a “direita”, fingindo precisamente
ignorar o papel que tive na luta contra as tentativas de hegemonização
do processo revolucionário pelo PCP e forças militares e
civis seus aliados, grita em altos bravos desde a noite de 26 de Novembro
que “o 25 de Novembro não foi até ao fim”, em grande medida
pela “defesa” que fiz do Partido Comunista, essa noite, perante as câmaras
da Televisão, no próprio momento em que a tal “direita” julgava
chegado o momento da “caça às bruxas”.
É verdade que ajudei a impedir a “caça às bruxas”;
é verdade que intervim em defesa da democracia; é verdade
que repetiria hoje, sem hesitar, o gesto dessa noite, fosse qual fosse
o preço a pagar; é verdade que penso que os comunistas portugueses
fazem parte de pleno direito da sociedade política portuguesa e
que a liquidação do PCP corresponderia à liquidação
da democracia em Portugal.
Dito isto, nada autoriza pensar-se numa qualquer possível identificação
minha com o PCP, incluindo o projecto descolonizador. Divergimos profundamente
em aspectos ideológicos fundamentais, divergimos totalmente quanto
ao projecto de sociedade para Portugal, divergimos em aspectos essenciais
da estratégia das relações internacionais e, portanto,
quanto à política externa portuguesa.(E sobre este ponto,
se não me explico mais detalhadamente, é porque, como é
óbvio, me afastaria completamente do objecto principal desta entrevista).
Quanto à descolonização, é preciso reconhecer,
antes de mais nada, que o PCP foi, das forças de resistência
contra a ditadura fascista, a que mais longa e consequentemente se
empenhou na luta anticolonial, tendo contribuído decisivamente,
antes de 25 de Abril, para a criação de uma consciência
de massas contra a guerra e o colonialismo. (É certo que o Partido
Socialista também lutou na mesma linha mas, como se sabe, o PS é
de criação muito recente embora muitas das personalidades
fundadoras militassem há muito na resistência antifascista
e participassem activamente na luta anticolonial. É entre outros,
o caso de Mário Soares).
Contudo, a participação visível do PCP no processo
de descolonização foi diminuta. Não aparecem militantes
seus directamente envolvidos nas negociações com os diferentes
movimentos de libertação. Não estavam representados
na Comissão Nacional de Descolonização. Nada se conhece,
publicamente, dos contactos que certamente tiveram com responsáveis
dos movimentos de independência; nem há “provas” bastantes,
até este momento, da sua identificação total com a
estratégia africana de inspiração soviética.
Sem prejuízo da história que, um dia, se fará, liberta
de preconceitos, de interesses pessoais ou de grupos e de paixões
alienantes, tenho para mim que o PCP sempre preferiu na descolonização,
métodos indirectos de pressão, formas subtis de influenciar
os centros de decisão, evitando a todo o custo “sujar as mãos”.
Há, no entanto, pelo menos quanto a Angola, algumas razões
que me levam a pensar que o PCP tenha influenciado de maneira decisiva
centros importantes de decisão ao nível do MFA. No final
do IV Governo Provisório, em meados de Julho de 1975, quando me
desloquei a Angola no mais aceso da luta entre os movimentos, e Luanda
se encontrava dominada pelo MPLA e defendida militarmente por forças
portuguesas contra uma iminente ofensiva da FNLA apoiada por forças
regulares zairenses (depois de ordens expressas minhas nesse sentido),
defendi a tese, tanto em Angola como depois em Lisboa que os acordos do
Alvor tinham sido completamente ultrapassados pela realidade e que Portugal
os deveria denunciar, abandonar a tese da “neutralidade activa” e assumir
corajosamente e claramente o apoio ao MPLA com ou, sem ligação
à UNITA, tese que se justificaria naquela altura pelo relativo neutralismo
deste movimento nas violentas confrontações entre o MPLA
e a FNLA e pela imperiosa necessidade prática de isolar a FNLA,
movimento que aparecia cada vez mais claramente a tentar converter Angola
num satélite do Zaire, submetendo-a ao imperialismo.
O MPLA emergindo como o movimento que mais legitimamente representava os
verdadeiros interesses do povo angolano e o que visivelmente dispunha de
maior apoio nas camadas mais conscientes da população, era
a solução que pragmaticamente melhor correspondia à
situação real e aquela que daria garantias, a meu ver sólidas,
de defesa dos portugueses instalados em Angola e dos seus interesses legítimos
e evitaria a debandada geral. Teria como contrapartida a continuação
do empenhamento militar português a fundo, de acordo com o MPLA.
Mas era possível que, nestas circunstâncias, e com a negociação
de novos acordos, se evitassem ingerências de países estrangeiros,
isto é, a intervenção militar da República
da África do Sul e o consequente aparecimento de cubanos e soviéticos
(embora fosse de admitir a intervenção do Zaire). Ora, é
neste momento que senti, como nunca, a oposição de “sectores
progressistas” do MFA à tese por mim defendida e, paralelamente,
uma estranha indiferença do PCP (que tinha pelo menos, um óbvio
significado de assentimento). A tese “esquerdista” da impossibilidade de
exigir dos militares um esforço suplementar em Angola generaliza-se
e a argumentação entrincheira-se obstinadamente na estafada
doutrina da “neutralidade activa”, sem atender às mudanças
operadas na prática. Note-se uma vez mais, que não foram
as Forças Armadas que se recusaram a combater. O seu espírito
de missão e o seu patriotismo ficaram bem patenteados quando aceitaram,
sem hesitar, a missão por mim imposta de defesa de Luanda a todo
o custo quando isso significava, objectivamente uma aliança com
o MPLA.
Foram as indecisões políticas de Lisboa a incapacidade do
poder político em definir a única via correcta para a independência
de Angola que desmoralizou as Forças Armadas e as impediu de actuar
até final como seria legítimo esperar que actuassem.
A recusa em dar o “golpe de rins” absolutamente indispensável para
uma alteração radical da relação de forças
políticas e militares em Angola e iniciar um novo processo naquele
território (que poderia respeitar ou não a data de 11 de
Novembro de 1975 para a independência, consoante os novos acordos
que fossem feitos), foi, em minha opinião, uma das causas fundamentais
(a nas) que conduzem à queda do IV Governo Provisório e à
constituição do V Governo Provisório, criando-se assim
condições políticas que impediriam por completo a
continuação do debate sobre Angola. Quando se forma VI G.P.
já era demasiado tarde (além que as contradições
internas estavam longe de ter desaparecido).
Foi esta a fase, também, que viu mais profundamente comprometida
a tese da autonomia do MFA relativamente aos partidos, tese ciosamente
defendida pelo chamado “grupo dos nove” e que não cessou de constituir
até hoje uma das traves mestras da sua acção política.
Mas os sectores do MFA que se deixaram infiltrar partidariamente, provocando
rupturas irreparáveis no movimento militar revolucionário,
são também responsáveis pelo que veio a acontecer
em Angola.
Influência dos sectores “esquerdistas”? Influência do PCP?
Ou pelo contrário, influências dos militares naqueles sectores
e no PCP?
Assumo inteiramente as
minhas responsabilidades
EXP. – Você assume a descolonização
que conduziu?
M.A. – Creio que resulta claro de
toda esta entrevista que assumo por completo a minha parte de responsabilidade
no processo de descolonização.
Sei muito bem que foram cometidos erros, alguns deles absolutamente inevitáveis;
outros erros foram consequência da extrema complexidade do próprio
processo revolucionário português; outros ainda derivados
de insuficiências humanas.
Não desconheço também, o sofrimento de muita gente
inocente os dramas pungentes que se abateram sobre muitas famílias
portuguesas, obrigadas a refluir para Portugal (quando muitas delas sentiam
como a sua terra onde viviam e trabalhavam honestamente, há mais
do que uma geração), a tragédia de lares desfeitos
e de bens destroçados, o penoso esforço de adaptação
a Portugal e ao refazer de uma nova vida.
Nada disto, porém, foi querido ou sequer admitido por aqueles que,
como eu, se lançaram na ingrata mas histórica e necessária
tarefa da descolonização. Processo que teria inevitavelmente
de produzir feridas e dramas humanos como acontece em todos os momentos
de mutação profunda da história. Feridas e dramas
que, apesar de tudo, não tiveram a dimensão atingida, em
circunstâncias semelhantes, noutros lugares. (Jamais se deram os
massacres e os “genocídios” de que fala uma certa direita – e que
ocorreram em outros processos descolonizadores - embora vítimas
haja a lamentar).
Poderia ter sido realizada de outro modo, a descolonização?
Sem dúvida. Mas não entrando neste momento na análise
detalhada das alternativas teoricamente possíveis (já me
tendo referido, em particular, ao longo desta entrevista, a inexequível
e inaceitável alternativa Spínola) – quem poderá em
boa consciência garantir que alguma delas teria sido menos dispendiosa
em termos de custos humanos, sociais e até económicos?
Seria, também, demasiado fácil, e, além do mais, demagógico,
atirar as culpas dos “custos da descolonização” para quem
teve a ingrata tarefa de executar, fosse a que nível fosse.
As responsabilidades devem e têm que ser assumidas por quem teve
de tomar as decisões políticas de fundo. Eu fui um deles
– e assumo por isso tudo de que fui responsável. Considero, entretanto,
lastimável que outros não assumam, como lhes competia, a
sua quota parte de responsabilidades.
Processo de Descolonização:
Melo Antunes rompe o silêncio em entrevista ao EXPRESSO
Entrevista de Augusto Carvalho
In o “EXPRESSO” de 17 Fevereiro
de1979 |