Espoliados de Angola e Moçambique
continuam
de mãos vazias
São decorridos vinte e três
anos sobre o abandono do Ultramar, e quantos perderam, em terras que consideravam
portuguesas, tudo quanto possuiam, continuam a aguardar as indemnizações
a que se julgam com direito.
Os Governos têm adiado uma solução
condigna e justa, ao contrário dos restantes países europeus
que possuiram territórios em terras africanas, que, atempada e honestamente,
pagaram indemnizações a quantos tiveram que abandonar o que
era seu, devido às independências, algumas delas sangrentas,
dos territórios onde viviam.
Ângelo Soares é um membro
activo da Associação dos Espoliados de Moçambique
e, a exemplo do que tem acontecido em anteriores edições
do Correio da Manhã, dá-nos mais uma vez conta da situação
incompreensível em que se encontram os espoliados ultramarinos,
situação que parece não motivar este Governo, nem
aqueles que o antecederam. E numa entrevista, em que quase foram desnecessárias
as perguntas, começou por nos afirmar:
"Os vários Governos após
o 25 de Abril, incluindo o actual, esqueceram -- ou não tiveram
a capacidade de claramente admitir? -- que os bens deixados pelos portugueses
no Ultramar, porque adquiridos e propriedade individual de cidadãos
portugueses, constituem, na realidade, um valioso património nacional."
"Segundo a Consituição Portuguesa
-- prosseguiu -- em vigor até Abril de 1976, Portugal estendia-se
do Minho até Timor, e os governantes portugueses não se cansaram
de repetir este "slogan" durante tantos anos, que todo um povo acabou por
se convencer de que era verdade. Em resultado desta política, e
das dificuldades e limitações impostas às transferências
de economias para o exterior, os portugueses, residentes no Ultramar, foram
forçados a investir nos vários territórios então
designados Províncias Ultramarinas, investimentos que foram efectuados
com a ilusão de que estavam investindo em Portugal, uno e indivisível.
Veio a revolução abrilista e o passado de Portugal em África
pasou a ser apelidado de colonialismo, e severamente condenado como tal."
Houve realmente colonialismo?
Recordando outras intervenções
suas sobre o mesmo tema, publicadas anos atrás no Correio da Manhã,
Àngelo Soares acrescentou:
"Já em entrevista anterior, dada
a este jornal, defendi o ponto de vista de que houve realmente colonialismo
e que os cidadãos portugueses, residentes no Ultramar, foram vítimas
de uma exploração colonial, como os naturais de origem africana.
E até apontei alguns exemplos, disso demonstrativos. Em qualquer
processo de descolonização, o país que foi potência
colonizadora, e exploradora, deve assumir as consequências desse
passado, o que até hoje não aconteceu em Portugal."
"Mais grave ainda -- prosseguiu: Foi publicada
a Lei nº 80/77, de 26 de Outubro, cujo Artº 40 dispõe
o seguinte: "Os berns sitos em território de ex-colónias,
que se prove terem sido aí expropriados, nacionalizados, ou de outra
forma objecto de privação duradoura de posse ou fruição,
bem como os respectivos títulos representativos de direitos, estão
sujeitos a regime de indemnização fixado segundo a lei do
Estado de localização dos bens ou de sede ou direcção
efectiva, a pagar pelo Estado que procedeu à respectiva nacionalização,
expropriação ou privação de posse ou fruição".
"Na altura os legisladores portugueses
que intervinham na Assembleia da República, da qual era presidente
o dr. Vasco da Gama Fernandes, e então Primeiro Ministro o dr. Mário
Soares, sabiam perfeitamente que a descolonização, a que
nós chamamos abandono do Ultramar, não havia deixado em normal
funcionamento, em qualquer dos novos países, um mínimo de
estruturas de qualquer espécie, judiciais incluidas. Sabiam, igualmente,
que a Frelimo havia implantado em Moçambique um sistema de governo
marxista que não respeitava a propriedade privada. E sabiam, ainda,
que os advogados em actividade em Moçambique, após um célebre
discurso do Presidente Samora, no Estádio da Machava, haviam tido
sentinelas, armadas de metralhadoras, à porta dos respectivos escritórios,
onde não mais entraram, pois a profissão liberal e independente
de advogado tinha deixado de existir em Moçambique. Por outra razão,
que todos conhecem, em Angola a situação era idêntica".
Uma atitude...totalmente cínica
Exposta esta situação, Ângelo
Soares não poupa comentários:
"Empurrar os cidadãos portugueses,
espoliados no Ultramar, para o "regime de indemnização fixado
segundo a Lei do Estado de localização de bens", como se
pretende com o Artº 40º é uma forma cinicamente clara
de alijar responsabilidades, atitude indigna de um Estado que se pretende
de Direito. E, quanto a nõs, inconstitucional, além de outras
por estas razões:
Em Outubro de 1977 estava em vigor a Constituição
Portuguesa promulgada em 1/4/76, que no Artº 62º dispunha: 1)
-- "A todos é garantido o direito à propriedade privada e
à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição".
E no Artº 14º a mesma Constituição era clara, quando
se referia aos portugueses residentes no estrangeiro (caso de Angola e
Moçambique independentes): "Os cidadãos portugueses que se
encontram ou residam no estrangeiro gozam da protecção do
Estado para o exercício dos direitos e estão sujeitos aos
deveres que não sejam incompatíveis com a ausência
do país".
"Durante os 23 anos decorridos --prosseguiu--
o Estado nada fez para defender, junto das instâncias internacionais
os interesses dos seus cidadãos espoliados em Angola e Moçambique.
Esquecendo-se de que assinou (como os seus parceiros na ONU, os vários
PALOP) a Carta Internacional dos Direitos do Homem, cujo artº 17º
é claro: " 1 --Toda a pessoa, individual ou colectiva, tem direito
à propriedade. 2 -- Ninguém pode ser arbitrariamente privado
da sua propriedade".
"Além disto -- continuou -- acresce,
no caso particular de Moçambique, que o Acordo de Lusaca, além
de ter sido negociado e subscrito entre os representantes portugueses e
os de um simples partido político, a FRELIMO, não contem
uma única palavra a defender os interesses dos cidadãos portugueses
depois da independência. E até hoje o Estado português
não se preocupou em conseguir que o Estado de Moçambique
ratificasse o Acordo de Lusaca, o que bem demonstra o pouco valor que tal
acordo merece aos Governos que temos tido".
"Por alturas de 1976/77 foram publicados,
nos principais jornais, anúncios em termos idênticos ao que
a seguir transcrevemos, saído num semanário de Johanesburg:
"O Consulado Geral de Portugal em Joanesburgo informa todos os interessados,
que tenham deixado bens e dinheiros nos antigos territórios portugueses,
que deverão enviar uma relação dos mesmos directamente
ao Instituto de Cooperação Económica e Direcção
Geral de Economia, organismos dependentes do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, Largo de Rilvas, Lisboa. Essas relações, que
terão de ser acompanhadas de fotocópias dos documentos comprovativos
de propriedade desses bens e dinheiros, destinam-se apenas a obter uma
tipificação e quantificação de casos concretos
a apresentar em eventuais negociações.
Joanesburgo, 6 de Dezembro de 1976. O
cônsul geral, Luís Navega".
E Ângelo Soares prossegue:
"Em resultado deste Aviso (era o título
do anúncio) foram entregues até agora cerca de 95 mil reclamações
em vários departamentos estatais, desde o Ministério dos
Negócios Estrangeiros ao Instituto de Cooperação Económica
e ao Gabinete de Apoio aos Espoliados. E, quanto a nós, o número
subirá acima das cem mil reclamações, quando os descrentes
e os descuidados resolverem reclamar.
E aqui se coloca a primeira pergunta:
teria sido possível, em qualquer tempo destes vinte e três
anos decorridos, cada um dos espoliados pôr a sua acção
reivindicativa da indemnização nos tribunais dos Novos Estados
nascidos com a descolonização? Através de que advogados?
E onde estariam os juízes para julgar? E onde arranjariam os espoliados
dinheiro para as despezas?"
Ângelo Soares não tem dúvidas
de que competiria ao Estado português cumprir as suas obrigações
e afirma-o com estas palavras:
"Numa situação destas reafirma-se
não poder o Estado português deixar de cumprir a obrigação
constitucional de defender os seus cidadãos. Lamentavelmente, os
vários Governos que tivemos pós-25 de Abril pouco ou nada
fizeram para tentar resolver o problema das indemnizações.
Alguns políticos, poucos, que têm levantado a voz em defesa
desta causa depressa se calam, impotentes para movimentarem os orgãos
do poder. Ficam restando as muitas promessas, especialmente em períodos
eleitorais. Deverá o Estado português assumir, clara e frontalmente,
a responsabilidade pelas indemnizações. Quando as pagar entrará
na posse dos bens indemnizados, e então poderá negociar com
os chamados PALOP, em termos globais, em que condições será
ressarcido. A Comunidade Económica Europeia mantém acordos
com Angola e Moçambique através do Tratado de Lomé,
situação da qual os nosses governantes nunca quiseram, ou
souberam, tirar proveito".
O problema e as Nações
Unidas
O mundo conhece a situação
em que se encontram os portugueses que foram espoliados dos seus bens em
África e Ângelo Soares recorda:
"Em Julho de 1974, a quando da visita
a Portugal do então secretário-geral da ONU, Kurt Waldheim,
foi-lhe dada a informação de que o montante dos investimentos
privados efectuados em Angola eram de 190 milhões de contos, e em
Moçambique de 150 milhões de contos, valores dessa altura.
Tais montantes teriam sido apurados com base no Plano Hexanal de Fomento
de 1974. E aqui se deixa a segunda pergunta: qual terá sido a reacção
do sr. Kurt Waldheim à situação dos portugueses espoliados
nos PALOP, agora membros legítimos da ONU?"
"A resolução 1514 -- prosseguiu
-- da XV Assembleia Geral das Nações Unidas, tomada
na Reunião do Plenário nº 947 de 14/12/1960, sob a designação
de "Declaração para a Concessão de Independência
às Colónias e aos Povos", a Assembléia Geral proclamou
que "todos os povos têm o direito inaliedável de completa
liberdade, de exercer a plena soberania, e à integridade nacional
do seu território" e "proclamou a necessidade de eliminar, rápida
e incondicionalmente, o colonialisno em todas as suas formas e manifestações",
e num pomto 3 termina com a afirmação: "A falta de maturidade
política, económica, social, ou educacional, nunca deve servir
como pretexto para atrasar a concessão de independência".
Com base nesta ( e outras) Resolução, Portugal foi altamente
pressionado a sair do Ultramar. Aos políticos abrilistas não
terá ocorrido a necessidade de a ONU liderar todo o processo de
descolonização, o que teria defendido os interesses portugueses
e evitado as terríveis guerras internas que se seguiram. Decorridos
vinte e três anos é altura de se saber a quem cabem responsabilidades".
As reclamações já
apresentadas
O nosso entrevistado volta a referir-se
às muitas reclamações já apresentadas pelos
espoliados do ex-Ultramar português, e fá-lo com estas palavras:
"Voltemos às 85 mil reclamações
já apresentadas. Por volta de 1985 entendeu, e muito bem, o então
Instituto para a Cooperação Económica que a vaga hipótese
de negociações a nível de Estados, entre Portugal
e os PALOP, para resolução dos problemas dos bens espoliados
precisava de ser apoiada pelo conhecimento efectivo do montante total dos
vários bens, cujas reclamações já haviam sido
recebidas (a tal "tipificação e quantificação"
de casos concretos referidos no Aviso de que atrás falei). Num esforço
digno de apreço, foi efectuada a informatização de
cerca de 45 mil processos, tendo os valores sido distribuidos pelas seguintes
rubricas:
1. Conversão de Moeda; 2. Descongelamento
de Contas Bancárias; 3. Indemnização por Bens Imóveis;
4. Indemnização por Bens Móveis; 5. Indemnização
por Despesas; 6. Em aberto; 7. Honorários por Trabalho Extraordinário;
8. Vencimentos em Atraso; 9. Suspensão de Dívidas a Instituições
de Crédito; 10. Transferência de Capitais; 11. Transferência
de Pensões; 12. Transferência de Rendimentos de Bens Imóveis;
13. Transferência de Juros de Obrigações; 14. Transferência
de Rendimentos de Quotas e Acções; 15. Transferência
de Seguros; 16. Participações Financeiras; 17. Depósitos
em Empresas; 18. Depósitos Consulares.
Este trabalho, que classificamos de extremamente
valioso (pois permitiria calcular, com algum rigor, os valores em causa)
acabou por ficar em meio. Pior ainda: existem na posse do GAE, o Gabinete
de Apoio aos Espoliados, as folhas emitidas pelo computador, mas a respectiva
disquete terá desaparecido. Pelo menos o GAE não conseguiu
encontrá-la. Sem a disquete não é possível
obterem-se os valores totais relativos a cada uma das rubricas. O GAE,
durante os cinco anos da sua existência legal, nunca conseguiu resolver
esta situação. Sabemos que os seus dirigentes fizeram os
possíveis, mas os meios para ser realizada uma nova informatização
nunca lhes foram facultados".
E acrescenta:
"Sem a preconizada "tipificação
e quantificação" dos bens deixados no Ultramar como podem
ser orientadas quaisquer negociações? Ou como poderá
o Governo avançar numa solução? Os políticos
contactados, a nível de ministros, secretários de Estado
e deputados, frequentemente imaginam valores elevados, que dizem incomportáveis.
Pessoalmente, prevemos que não será assim, mesmo admitindo
que os valores de 1975 venham a beneficiar de uma justa correcção
monetária. Decorreram vinte e três anos, que país é
este?
A integração dos espoliados
A entrevista já vai longa, mas Ângelo
Soares tem ainda algo a dizer:
"A forma como os espoliados do Ultramar
se integraram na sociedade portuguesa, da qual a grande maioria havia saído
há anos (calma, ordeira, trabalhadora, aparentemente desmobilizada)
não tem sido devidamente avaliada pelos principais partidos políticos.
Isto porque os espoliados estão politicamente bem informados e já
demonstraram saber usar o seu poder de voto. Afirmamos, sem receio de desmentido,
que o professor Cavaco Silva ainda hoje seria Governo com maioria absoluta
se, em vez de criar um GAE--Gabinete de Apoio aos Espoliados, sem estruturas
nem eficiência adequadas à enormidade dos problemas, houvesse
tido em conta as reinvidicações dos espoliados, feitas com
persistência durante os seus dois mandatos."
"Sem espalhafatos nem grandes parangonas
na comunicação social, têm vindo a realizar-se, no
decorrer dos últimos 23 anos, por todo o país, com uma regularidade
e assiduidade em que os politicos não atentam, convívios,
confraternizações, reuniões de esclarecimento, etc.,
durante os quais os espoliados de Angola e de Moçanbique se encontram,
conversam, abordam os seus problemas e exprimem as suas críticas,
à mistura, claro, com o natural e humano recordar do passado. Desde
Fátima a Leiria, Braga, Mira, Bussaco, Parque de Monsanto e Caldas
da Rainha, até aos muitos restaurantes já habituais. A tradição
foi criada e tornam-se desnecessárias grandes convocatórias.
Os endereços existem e, em regra, toda a gente sabe onde encontrar
os amigos. Esta forma de mobilização, fora das ruas e das
manifestações nascidas no pós 25 de Abril, confundiu
os políticos portugueses, que até agora não mostraram
capacidade para a saber interpretar correctamente".
"O actual Governo -- acrescenta ainda
-- recebeu já das Associações de Espoliados os elementos
necessários para estudar, com interesse e profundidade, o problema
das indemnizações por bens deixados no Ultramar. Sabemos
que um competente assessor do Primeiro Ministro foi incumbido de avaliar
o problema e fazer o devido relatório, missão que desempenhou
com a competência que se lhe reconhece. Veremos se a descrença
dos espoliados nos políticos desta vez deixará de ter razão
de existir".
Ângelo Soares termina, com estas
palavras:
"Foi o governo socialista de Bertino Craxi
quem publicou, em Itália, em 1985, a legislação que
tornou possível que fossem pagas a cidadãos italianos indemnizações
pelos bens espoliados em 1975 pelo Estado de Moçambique. O nosso
governo socialista bem poderá proceder de igual modo para com os
espoliados portugueses, atitude que até teria a virtude de remediar
a intervenção desastrosa que alguns dos seus membros de cúpula
tiveram em todo o processo designado por descolonização.
Os espoliados do Ultramai, como bons portugueses que são, querem
parar de perguntar: Que país é este?...
Perguntámos ainda a Ângelo
Soares, como membro da Associação dos Espoliados de Moçambique,
se àquela associação chegam muitos pedidos de informação
por parte dos espoliados. Respondeu-nos:
"Somos abordados por muitos espoliados
que nos pedem informações sobre a situação
actual. Além disso temos arquivados no Internet as mais diversas
informações, retalhos de imprensa, entrevistas, etc. que
estão ao dispor dos interessados, nos seguintes sites: http://www.terra
vista. pt/Bilene/1122 ou 1330.
A entrevista chegou ao fim. Mais uma vez
os espoliados ergueram a voz, embora pareça que ninguém os
ouve. Vinte e três anos são passados desde a descolonização
exemplar. Em moçambique viviam muitos estrangeiros, italianos, gregos,
ingleses, etc. Portugal dá ao mundo, mais uma vez, uma má
imagem: é o único país da Europa onde os espoliados
de África não receberam qualquer indemnização.
Inácio de Passos
in "Correio da Manhã" |