“ CHEGOU A PENSAR-SE NUMA CONSULTA GENUÍNA ”

          1-A liberdade é um bem precioso, inestimável, a que todo o ser humano tem direito e por que deve lutar independentemente da sua cor ou raça (…).
Infelizmente ainda hoje assistimos, e desta vez em nome da democracia, ao atropelo dos mais elementares princípios da moral, continuando na mira dos mais poderosos a exploração do homem pelo homem.
          E assim, já depois do findar da Segunda Guerra Mundial, factores favoráveis em todo o mundo permitiram que nas nossas colónias se esboçassem movimentos, os quais, inicialmente, através do diálogo entre todos, tinham por objectivo a abolição de leis (…) acabando de vez com as diferenças de tratamento entre brancos e negros e as que havia dentro de cada um destes grupos.
          Estou a lembrar-me do projecto para a formação de uma pátria lusíada que principiara por ser uma comunidade de que fariam parte Portugal, Brasil, Angola, para mais tarde dar lugar a uma grande nação, a que depois se juntariam as outras nossas colónias. Nasceria assim a pátria lusíada.
          Em Luanda, nos princípios dos anos sessenta, onde já se encontrava uma comissão brasileira, realizavam-se reuniões para o efeito, nas quais tomavam parte políticos e intelectuais portugueses e brasileiros, em ligação muito estreita com dirigentes negros na clandestinidade no estrangeiro, entre os quais Agostinho Neto e Amílcar Cabral.
          O governador-geral, general Deslandes, acompanhava de perto o processo, dando-lhe o seu aval. A PIDE depressa se deu conta. Salazar demitiu o governador e este promissor projecto de futuro acabou por se malograr.
          Na verdade, a “alta finança” instalada em Lisboa e que na realidade era a “máquina exploradora” dos territórios do Ultramar não queria perder privilégios.
          E porque os responsáveis do anterior regime não aceitaram uma realidade histórica, recusando o diálogo e teimosamente agarrando-se a conceitos políticos ultrapassados, os povos de Angola, Moçambique, S. Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Guiné viram-se obrigados, para conseguir a sua libertação, a recorrer a métodos que de começo não teriam nos seus propósitos e a aceitar ajuda de países estrangeiros cujas facturas ainda não estarão pagas e tê-lo-ão de ser pelos tempos vindouros.
          Penso que os nossos irmãos africanos, entretanto, já se terão apercebido que, embora os portugueses ao longo dos séculos tenham cometido erros, alguns dos quais à luz da época nem seriam muito graves, são mais generosos, mais leais, com um sentimento muito nosso de anti-racismo, mais humanos que a maioria dos estrangeiros, que depois da independência acorreram muito pressurosos e “preocupados” com o seu progresso e bem-estar.
          Dada a descolonização apressada e nada exemplar, dado o interesse de potências estrangeiras em controlar estrategicamente, e se possível fisicamente, aqueles territórios, com vista a ulteriores lucros, considerando ainda o grande interesse dessas potências em vender os seus excedentes de armamentos, os povos das nossas ex-colónias têm certamente suportado enormes sofrimentos, em especial os de Angola e Moçambique, mas estou convicto que outros dias melhores hão-de vir.
          2. (…) A vida terá sido particularmente difícil e mesmo dramática no caso de Angola e Moçambique, para  o que contribuiu um pós-25 de Abril anárquico, a que se seguiu uma descolonização mal preparada e intencionalmente acelerada, e um pós-independência cheio de problemas complicados (…).
          No caso de S. Tomé e Príncipe, a situação degradou-se rapidamente em todos os sectores (…) Só um inebriamento colectivo os unia num desejo – obter a “Independência Total Imediata”. (…) Recordo um episódio aquando de uma visita que fiz à povoação de Ribeira Peixe: ao dirigir-me a cerca de cinco mil pessoas, iniciei a prelecção apresentando-me como um novo governador e dizendo estar ao dispor de todos para os ajudar. Logo um dos assistentes gritou: “Nós não precisamos de qualquer ajuda do Sr. governador, só queremos a “Independência Total Imediata e já”.
          No entanto, com o decorrer do processo de descolonização (aqui foi possível), tomaram-se medidas no intuito de evitar que o clima de anarquia se agravasse e fosse substituído por uma situação de paz, de tolerância, de ordem, o que se conseguiu de certo modo, tornando possível a realização de eleições livres para uma Assembleia Constituinte.
          (…) Pensou-se muito seriamente na possibilidade de se realizar uma consulta popular verdadeiramente genuína, perguntando-se ao povo se de facto desejava uma Independência Total Imediata, ou de auto-determinação, ligado a um Portugal democrático. Não se levou por diante esta ideia porque a mentalização pró-Independência Total Imediata foi de tal modo intoxicante que havia o perigo de ser considerada mais uma “manobra colonialista” dos brancos para que, disfarçadamente, a colonização continuasse.
          (…) Assim, tendo em atenção que a cotação do cacau, fonte principal da sua riqueza, começou a baixar drasticamente, a saída dos técnicos portugueses, a intensa agitação política e social verificada, e o estado psicológico da população, perfeitamente desmotivada no que concerne à necessidade de um trabalho árduo e persistente (…) obviamente que os 20 anos passados não poderiam ter sido bons.
 

Artigo de PIRES VELOSO* 
* Brigadeiro na reserva. Governador a partir de Julho de 74 e alto-comissionário até à independência de S. Tomé e Príncipe, em 12-07-75, antigo comandante da Região Militar Norte e ex-candidato presidencial

In o “PÚBLICO” de Sexta-Feira, 28 Abril, 1995