Em 11 de Junho do corrente ano, quando
do acto de posse dos então novos governadores-gerais de Angola e
de Moçambique, o general António de Spínola, ao tempo
Presidente da República, pronunciou um notável discurso,
em que afirmou a certa altura:
«No mundo moderno, só existe
verdadeira independência política se esta resulta de uma autêntica
autodeterminação, e só pode haver autodeterminação
em clima de livre e perfeito funcionamento das instituições
democráticas.
e antes de terminar: «Poderão pois estar tranquilos os africanos que se mantiveram neutros, porque não lhes será negado, por essa razão, o direito de optar. Poderão estar tranquilos os africanos que se nos confiaram e ao nosso lado combateram, tendo feito já a sua opção. E poderão estar tranquilos os europeus que acham a África a sua terra e ali se sentem cidadãos como quaisquer outros; não os abandonaremos na cobarde procura do fácil e na demagógica busca da popularidade. Poderão também estar tranquilos quantos vêm lutando pelo direito à autodeterminação, pois que a sua vontade será respeitada pela vontade das maiorias. A todos garantiremos que nessa hora grande serão chamados, sem excepção, a dar o seu voto.» Posteriormente, em 27 de Setembro, noutro discurso – este pronunciado na primeira reunião com as «Forças Vivas de Angola» começou o então Senhor Presidente da República por definir o processo da descolonização, nos seguintes termos: «Começarei por afirmar,
uma vez mais, a intransigente adesão à pureza da concepção
democrática das sociedades políticas, entendendo por democracia
a imanência popular da soberania, a pluralidade partidária,
o sufrágio directo e a intervenção dos cidadãos
na feitura e alteração de leis, a institucionalização
da vida política, o centralismo democrático, e a responsabilidade
dos mandatários do poder perante os seus mandantes, exigida por
intermédio de instituições políticas definidas
em texto constitucional. Desta concepção de democracia se
acham portanto excluídas quaisquer formas de monolitismo político
ou de mobilização de massas; e muito menos nela se encontram
cabimento os processos que consintam decisões sobre o destino de
um povo tomadas à margem da vontade desse mesmo povo.
Qualquer das afirmações
contidas nos notáveis discursos referidos, visando o esclarecimento
dos condicionalismos e dos condicionamentos que presidem ao processo de
descolonização, sendo sem sombra de dúvida as mais
consentâneas com a evolução da civilização
e dos direitos humanos, não poderiam por tal facto deixar de se
inserir integralmente na linguagem precisa e seca dos textos constitucionais.
«O Movimento das Forças Armadas Portuguesas, na profunda convicção de que interpreta as aspirações e interesses da esmagadora maioria do Povo Português e de que a sua acção se justifica plenamente em nome da salvação da Pátria, fazendo uso da força que lhe é conferida pela Nação através dos seus soldados, proclama e compromete-se a garantir a adopção das seguintes medidas, plataforma que entende necessária para a resolução da grande crise nacional que Portugal atravessa.» Na parte «B – Medidas a curto prazo», nº 8, especificam-se as medidas que se referem à política ultramarina: «8 – A política ultramarina
do Governo Provisório, tendo em atenção que a sua
definição competirá à Nação,
orientar-se-á pelos seguintes princípios:
Como bem se alcança, este nº 8 é perfeitamente explícito em que a definição da política ultramarina competirá à Nação – e não ao Governo Provisório – aliás em rigorosa conformidade com o fundamento doutrinário do Programa em termos deste expressamente estatuir que: «…as grandes reformas de fundo só poderão ser adoptadas no âmbito da futura Assembleia Nacional Constituinte…» Ninguém de início admitiu
que o desmantelamento do território nacional não fosse uma
das tais grandes reformas de fundo que «só poderão
ser adoptadas no âmbito da futura Assembleia Nacional Constituinte».
«b) Criação de condições para um debate franco e aberto, a nível nacional, do problema ultramarino» era uma condição «sine
qua non» da execução do Programa do Movimento das Forças
Armadas.
Estabelece-se nesse decreto-lei: «Em obediência aos princípios do Programa do Movimento das Forças Armadas, o Governo Provisório actuará dentro das grandes linhas de orientação que a seguir se definem, e cujos fundamentos deverá solidamente alicerçar: 7. Política ultramarina: a) Reconhecimento de que a solução das guerras no ultramar é essencialmente política, e não militar;
b) Instituição de um esquema destinado à
consciencialização de todas as populações
c) Manutenção das operações defensivas no ultramar, destinadas a salvaguardar a vida e os haveres dos residentes de qualquer cor ou credo, enquanto se mostrar necessário;
d) Apoio a um acelerado desenvolvimento cultural, social e económico
das populações
e) Exploração de todas as vias políticas
que possam conduzir à paz efectiva e
Em face do que antecede, não
poderá deixar de se confirmar uma perfeita consonância entre
as declarações do então Chefe de Estado e do que na
legislação constitucional se estabelece quanto à política
ultramarina.
A
verdade é que, quanto à Guiné e Moçambique,
as populações brancas, negras ou mestiças se viram
entregues, sem prévio debate a nível nacional a um movimento
subversivo armado. Nenhum voto foi dado. Nenhum voto foi pedido. As regras
mais elementares da democracia foram esquecidas. As populações
foram entregues a determinado movimento dito nacionalista sem terem a menor
possibilidade de expressar a sua opinião.
Não nos debruçaremos
sobre o acordo com o P.A.I.G.C.; chama-se, todavia, a atenção
para o facto de que o «generoso» reconhecimento de ser Portugal
o responsável pela guerra sofrida «agressor»
confesso num conflito que não provocou, não iniciou nem quis
prolongar – abre as portas do nosso parco tesouro a todos os pedidos de
indemnização por danos morais e materiais que o P.A.I.G.C.
resolva apresentar.
I
– Ao longo de todo o seu articulado, não se vislumbra uma sombra
sequer de condicionamentos de qualquer estruturação democrática
capaz de permitir aos povos de Moçambique verem assegurados os meios
de poderem exercer livremente os seus direitos de expressão e de
associação. Nem mesmo quanto aos europeus de origem metropolitana
esse direito foi assegurado.
«1. O Estado Português, tendo reconhecido o direito do povo
de Moçambique à independência, aceita por acordo com
a Frelimo a transferência progressiva dos poderes que detém
sobre o território nos termos a seguir enunciados.
As contradições são
violentas. Por um lado o Estado Português reconhece o direito dos
povos de Moçambique à independência, para logo a seguir,
no mesmo número, passando por cima dos direitos das populações
se pronunciarem – isto é, com o mais completo desrespeito pelas
normas constitucionais (alínea b) do nº 8 do Programa do Movimento
das Forças Armadas, parte integrante das leis constitucionais ao
abrigo da Lei 3/74 – acordar numa entrega pura e simples dos poderes a
um movimento subversivo armado, que nunca demonstrou possuir qualquer mandato
representativo por parte da maioria dos povos de Moçambique e que
é do conhecimento comum apenas representar uma pequena parte da
população moçambicana.
«18. O Estado Moçambicano independente exercerá integralmente a soberania plena e completa no plano interior e exterior, estabelecendo as instituições políticas e escolhendo livremente o regime político e social que considerar mais adequado aos interesses do seu povo.» II – A defesa dos interesses morais e culturais portugueses não é feita em termos inequívocos. Nem sequer a língua portuguesa é desde já acordada como a língua oficial. Tudo se resume a expressões vagas, não passando de intenções susceptíveis de se esfumarem de um momento para o outro: «13.
A frente de Libertação de Moçambique e o Estado Português
afirmam solenemente o seu propósito de estabelecer laços
de amizade e cooperação construtiva entre os os respectivos
povos, nomeadamente nos domínios cultural, técnico, económico
e e financeiro, numa base de independência, igualdade, comunhão
de interesses e respeito da personalidade de cada povo.
III – Os direitos morais e materiais dos actuais residentes de origem metropolitana, à semelhança do que aconteceu com os direitos políticos, também não se encontram salvaguardados. Nada lhes é assegurado. Tudo continua a ser vago e destituído de significado preciso. Só o futuro regulará os seus direitos à medida dos caprichos dos «novos senhores», e ainda por cima, condicionados a bases de reciprocidade, como se a obra realizada por Portugal em Moçambique não tivesse significado nem valor. Veja-se o que o acordo preceitua a tal respeito: «15.
O Estado Português e a Frente de Libertação de Moçambique
comprometem-se a agir concertadamente para eliminar todas as sequelas
de colonialismo e criar uma verdadeira
harmonia racial. A este propósito, a
Frente de Libertação de
Moçambique reafirma a sua política
de não discriminação, segundo a qual a
qualidade de moçambicano não se define pela cor da pele,
mas pela identificação
IV – Mesmo para a presente fase de transição, o acordo concede à Frelimo poderes tais que de longe ultrapassam quaisquer limites admissíveis, tornando a entrega integral de Moçambique à Frelimo como «de facto» já processada. Assim: a) Logo na alínea do nº 6 reconhece-se categoricamente que a nomeação do primeiro-ministro do Governo de Transição, será da competência da Frelimo. Nem sequer a intervenção do Alto Comissário é requerida para a concessão nominal de um simples «agrément»; b) A nomeação do Governo também se inseriu no anterior, já que dos nove ministros (fora o primeiro-ministro), a nomeação de nada menos de seis é também da competência da Frelimo. E isto não contando com os Secretários de Estado nem com os Subsecretários; c) Havendo um Alto Comissário, representante da soberania portuguesa e a quem entre outras funções compete exercer, nos termos do artigo 2º da Lei 8/74, de 9 de Setembro, as funções de comandante-chefe das Forças Armadas Portuguesas, numa altura em que Moçambique é ainda parte integrante da Nação Portuguesa, não estão sob o seu comando as forças da Frelimo ali estacionadas. Com efeito, de acordo com o nº 10, essas forças dependem directamente do primeiro-ministro (isto é, da Frelimo) como se transcreve: «10. Em caso de grave perturbação da ordem pública, que requeira a intervenção das Forças Armadas , o comando e coordenação serão assegurados pelo Alto Comissário, assistido pelo Primeiro-Ministro, de quem dependem directamente as Forças Armadas da Frente de Libertação de Moçambique.» V – Os eventuais direitos preferenciais que deveriam caber a Portugal no desenvolvimento económico de Moçambique, também foram relegados. Assim e apesar de Moçambique ser parte integrante da Nação, com um Alto Comissário que representa o Presidente da República e o Governo Provisório, já se dá ao Governo de Transição daquele Estado plenos poderes para directamente acordar no estrangeiro os negócios que entenda fazer, passando por cima do Alto Comissário e do próprio Governo Central: «17.
O Governo de Transição procurará obter junto de organizações
internacionais ou no quadro de relações bilaterais a ajuda
necessária ao desenvolvimento de Moçambique, nomeadamente
a solução dos seus problemas urgentes.»
VI – Quanto aos interesses financeiros de Portugal há, porém, algo mais a acrescentar. Nos termos do nº 16, o Estado Português obriga-se a transferir para o Banco Central a formar em Moçambique, o activo e passivo do departamento de Moçambique do Banco Nacional Ultramarino, isto é, portanto a parte que lhe cabe das suas reservas. Mas no nº 14 dá-se à Frelimo, através da subjectividade da cláusula, o direito de honrar ou não, como o entender, os compromissos financeiros assumidos por Portugal em nome de Moçambique: «14. A frente de Libertação de Moçambique declara-se disposta a aceitar a responsabilidade dos compromissos financeiros assumidos pelo Estado Português em nome de Moçambique, desde que tenham sido assumidos no efectivo interesse deste território.» Nos termos desta cláusula a Frelimo pode endossar todas as dívidas contraídas pelo Estado Português em nome de Moçambique, para os contribuintes metropolitanos. Repare-se nas expressões «…declara-se disposta…» e «…desde que tenham sido assumidos no efectivo interesse deste território». Bastará, pois, para o efeito declarar que não está disposta a aceitar as responsabilidades ou, no caso de «em princípio» se encontrar disposta a rejeitar essas responsabilidades, declarar pura e simplesmente que as operações a que as mesmas se referem não foram realizadas no efectivo interesse de Moçambique. Poderá não liquidar um tostão dos 15 a 20 milhões de contos que custará Cabora Bassa, declarando que o interesse do empreendimento era essencialmente da África do Sul pelo fornecimento da energia que lhe asseguraria, embora encaixe os rendimentos. E o mesmo raciocínio poderá facilmente aplicar a centenas de operações que envolveram o aval do sector público e privado da Metrópole na ordem das dezenas de milhões de contos. VII
– Em face desta análise, por muito sumária que ela possa
ser, parece não poderem subsistir dúvidas válidas
quanto ao mérito do acordo de Lusaka.
Depois da
Segunda Guerra Mundial, o mundo assistiu a vários processos de descolonização,
levados a cabo por diferentes países da Europa Ocidental – a Holanda,
Bélgica, França, Espanha e Grã-Bretanha. E da comparação
entre os processos utilizados, mesmo para aquelas situações
mais difíceis, como as da Holanda na Indonésia, França
na Argélia e Bélgica no Congo Belga, se terá que admitir
que não haverá até hoje processo mais infeliz e menos
próprio de uma nação europeia e das instituições
democráticas, do que o processo utilizado pelo Governo Provisório
para com Moçambique. Mas não é o Governo que ficará
na história como comparsa nessa cedência; é a Nação
Portuguesa. Será o Povo Português que, todavia, nem
sequer foi ouvido!
Artigo de A Valdez dos Santos no Jornal
Português de
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