EXP. - Não teve medo que
esse movimento, sem intervenção de qualquer força
de autoridade, causasse mortes?
O.S.C. - Era um risco que se corria.
Mas, a partir do momento em que as terras estivessem ocupadas, era difícil
que os agrários se confrontassem com trabalhadores decididos e armados
de caçadeiras, protegidos, ainda por cima, pelo Copcon. E isso,
de facto, aconteceu. Rapidamente, isto começou a alastrar, e foram
então ocupados um milhão e 200 mil hectares de terras no
Alentejo. Mais tarde, o PCP procura cavalgar esta situação
e praticamente reivindica ter sido ele a motivar a ocupação
das terras, o que não é verdade. Fui eu, no Copcon, que dei
esta de1iberação.
EXP. - Costa Gomes nunca teve uma
reunião consigo para lhe chamar a atenção para os
excessos do Copcon?
O.S.C. - Nunca. O Costa Gomes nunca
me chamou a atenção para nada, e eu nunca me lembrei de pedir
autorização para fazer fosse o que fosse. Contudo, houve
algumas decisões que eu achei que eram de tão grande responsabilidade
que as discuti no Conselho da Revo1ução ou no Conselho dos
Vinte.
EXP. - 0 Copcon também acabou
a prender pessoas por conspiração ou sabotagem económica,
por exemplo, em Setembro e Dezembro de 74.
0.S.C. - 0 prender pessoas foi um
aspecto extremamente delicado da nossa actuação. Essa missão
foi-me dada especificamente pelo general Costa Gomes e resultou da manifestação
da «maioria silenciosa», na véspera do 28 de Setembro.
Gente da segunda divisão do EMGFA, a divisão das informações,
fingindo ser traficante de armas, teve um encontro, numa garagem, com pessoas
interessadas em comprar G3. Foi mesmo apresentada uma viatura carregada
com armas. E essas pessoas eram, de facto, de direita ou extrema-direita,
ligadas à manifestação da «maioria silenciosa».
EXP. - 0 único indício
que tinham era essa informação de que havia alguém
que queria comprar armas?
0.S.C. - E as ligações
existentes, não é ? Depois, a certa altura, eles detectam,
também, a tipografia onde foram impressos os cartazes da «maioria
silenciosa». Noutros pontos já havia urna proliferação
muito grande de partidos de direita e de extrema-direita... Então,
foram feitos assaltos a sedes desses partidos e foram descobertas armas
e máscaras. Havia ali uma preparação bélica
por parte de forças que, nos bastidores da «maioria silenciosa»,
empurravam a população para participar na manifestação,
que visava dar um apoio muito grande e um reforço ao poder de Spínola.
EXP. - Costa Gomes chega a ir a
Belém pedir a Spínola para cancelar a manifestação,
não é?
0.S.C. - Sim, certo. E o Spínola
recusa: «É uma manifestação patriótica.»
EXP. - Depois, há as barricadas
populares nas entradas de Lisboa. E o que leva Spínola a demitir-se
na noite do dia 29 de Setembro ?
0.S.C. – É o próprio
Spínola que verifica que está desapoiado, que não
tem condições nenhumas para dar continuidade à sua
acção. Ele, aliás, já tinha ficado derrotado
moralmente com a questão da Independência das colónias,
quando fez a dec1aração de 27 Julho. Nessa altura, está
perfeitamente isolado, não tem capacidade para levar por diante
uma presidência efectiva. É contrariado pelo MFA e, portanto,
abandona. E como o Galvão de Melo, o Diogo Neto e o Silvério
Marques se tinham cololocado em apoio ao Spínola com a demissão
dele caem todos. Só ficam Costa Gomes, os homens da Marinha e mais
ninguém.
EXP. - A escolha de Costa Gomes
para Presidente, pelo MFA, é automática ?
O.S.C. - Claro. Costa Gomes assume
naturalmente a Presidência da República em substituição
de Spínola, empurrado por nós.
EXP. - No final de 74, a aproximação
das primeiras eleições democráticas é o factor
que começa a desagregar a unidade aparente que havia dentro do MFA.
E começam a surgir vozes
de militares, inclusive, contra a realização das eleições.
O.S.C. - Não, não.
O compromisso de realização das eleições, no
máximo um ano após o 25 de Abril de 74, estava assumido e
tínhamos de o levar por diante. Claro que se fariam as eleições,
mesmo que houvesse gente entre nós - nós, MFA - considerando
que eram prematuras, que não deviam ser realizadas.
EXP. - Era o seu caso ?
O.S.C. - Eu considerava que devia
ser dado mais tempo, de facto. Propus: «Não será melhor
adiar o processo eleitoral?» E os meus camaradas disseram: «Não,
assumimos este compromisso, temos de cumprir.» E eu aceitei isso
perfeitamente.
EXP. - Você não fez
isso, também, porque as sondagens - as primeiras que começa
a haver em Portugal - davam a vitória ao PS ou ao PSD ?
O.S.C. - Não, era-me perfeitamente
indiferente. Não me interessava rigorosamente quem fosse aue ia
vencer as eleições. 0 importante era considerar que nós,
MFA, com o poder ou não, tínhamos a possibilidade de consolidar
o processo e de dar ao povo uma força muito grande, que tomasse
irreversíveis as conquistas alcançadas. Nem as nacionalizações,
nem a reforma agrária, nem as comissões de base, nada disso
teve consolidação. E, para mim, esse foi um erro grave de
todo o processo revolucionário. Avançou-se rapidamente para
situações que nós julgávamos adquiridas, mas
que, não tendo sido consolidadas, permitiram depois um recuo enorme.
EXP. - Contou-nos como conhecem
Mário Soares. E que contactos manteve com outros líderes
partidários: Sá Carneiro, Álvaro Cunhal ?
O.S.C. - Conheci muito mal o Sá
Carneiro. Tive dois, três contactos com o Sá Carneiro e que
não chegaram nunca ao ponto da discussão política.
Penso que foi um homem com urna grande capacidade e visão política,
e tinha para mim uma coisa extremamente importante numa figura política,
que era capacidade de decisão. Tinha peso, tinha força e
tinha carisma.
EXP. - Mas estava do outro lado
da sua barricada.
O.S.C. - Sim, sem dúvida
nenhuma.
EXP. - Durante o PREC, quem
se vê na rua é Mário Soares a dar a cara e a lutar
contra a forma como se está a desenvolver o processo revolucionário,
enquanto Sá Carneiro anda um bocado desaparecido.
O.S.C. - Pois, isso é verdade.
0 Sá Carneiro resguarda-se muito nesse campo. E Mário Soares
assume, de facto, a liderança da luta contra um sistema que já
estava a ser implantado pelo PCP no terreno, um partido que tinha ficado
em terceiro lugar nas eleições. Com a vitória nas
eleições, Mário Soares tem a garantia de que vai ter
um enorme apoio. Tem a garantia de que a esmagadora maioria dos oficiais
do MFA também apoia o Partido Socialista.
EXP. - A luta de Mário Soares
tem duas frentes: é contra o PCP mas também contra sectores
do próprio MFA e contra o próprio Otelo, que era urna das
figuras de referência do MFA. E o Copcon faz nessa altura prisões
por sabotagem económica e passa mandados de busca em branco.
O.S.C. - Posso garantir que nunca,
durante todo o PREC até ao 25 de Novembro, nunca prendi ninguém
por minha iniciativa. Todas as prisões feitas pelo Copcon foram
iniciadas a partir do 28 de Setembro por decisão do general Costa
Gomes. Nós não tínhamos informação concreta
sobre quem estava por dentro da «maioria silenciosa» e decidimos
prender figuras de proa do regime fascista. Com o Costa Gomes, que os conhece,
começamos a estabelecer uma lista das figuras do regime que vamos
deter para impedir que possam servir de apoio à manifestação
da «maioria silenciosa».
EXP. - Essa lista foi feita com o
controlo de Costa Gomes?
O.S.C. - Exactamente. Bom, também
são avançadas outras figuras, o Melo Antunes tem mais algumas
ideias, e faz-se ali uma lista. Mas o comandante Conceição
e Silva, que estava a presidir a Comissão de Extinção
da PIDE-DGS, chama a atenção para urna coisa: quando quis
dar execução a mandados de captura contra elementos da PIDE
e da Legião, entregou-os ao Casanova Ferreira que. corno major,
estava a comandar a PSP de Lisboa e ele recusou-se a cumpri-los, com a
afirmação de que esses mandados não vinham assinados
por um juiz. Perante esta intervenção, o Costa Gomes diz:
«Ah é?. Bem, não podemos estar a perder tempo, a manifestação
está prevista para amanhã, temos de prender essa gente toda...
Então, vão ser forças militares a fazer as prisões.
Otelo, em meu nome, fica encarregado de assinar os mandados de captura
para essa gente toda. Aproveita-se a situação para, além
disso, recuperar os mandados de captura preparados pelo Conceição
e Silva para elementos da PIDE e da 1ª Legião Portuguesa até
ao nível de comandante de terço. Então o Conceição
e Silva vai consigo para o Copcon e lá o Otelo assina os mandados
de captura para prendermos o Elmano Alves, o Silva Cunha, essa gente toda.»
EXP. - Isso abrangia quantas pessoas,
mais ou menos ?
O.S.C – Sei lá ... Dezenas
de pessoas. Bom, foi uma dificuldade tramada, mas que levámos a
bom termo. E o Costa Gomes disse: «A partir daqui, o Otelo é
a única entidade autorizada a isto, podendo delegar, se quiser,
em comandantes de região...» E eu passei a fazer essa
assinatura.
Nunca tomei a iniciativa de prender fosse
quem fosse. Simplesmente, a diluição de poderes
era grande e havia o Gabinete do Primeiro Ministro que solicitava ao Copcon
a prisão de elementos vários, inclusiva por sabotagem económica...
O Rosário Dias, que era um jovem economista ao serviço da
Marinha e assistia o Vasco Gonçalves para as questões económicas,
é responsável pelo pedido, feito através do Gabinete
do primeiro-ministro, de dezenas de prisões por questões
de sabotagem económica. 0 Rosa Coutinho, enquanto elemento da Junta
de Salvação Nacional fartou-se de me pedir, de solicitar
ao Copcon, a prisão de elementos... Tive, aliás, um problema
desgraçado com o cardeal Patriarca, por terem sido presos por ordem
dele elementos da administração da Rádio Renascença.
Havia elementos da Junta de Salvação Nacional que também
pediam e as Comissões de Inquérito ao 28 de Setembro e ao
10 de Março... No rescaldo do 11 de Março, quando ainda estava
a decorrer a chamada «assembleia selvagem», recebo no Copcon
a indicação de que deve ser preso fulano e fulano, o Almeida
Bruno, etc. A minha iniciativa foi nula em relação às
capturas.
EXP. - Mas se teve tanta iniciativa
em relação a outras coisas, porque é que aí
não teve iniciativa nenhuma? Opor-se, dizer que achava mal... ?
O.S.C. - Aí não tomei
iniciativa nenhuma porque eu não estudava processos de sabotagem
económica nem outros processos tossem eles quais fossem.
EXP. - Então ficava indiferente
perante a prisão de Almeida Bruno, por exemplo, com quem tinha andado
a conspirar antes do 25 de Abril ?
O.S.C. - No decorrer da «assembleia
selvagem» do MFA I recebo um telefonema de um oficial do Copcon
presente nessa assembleia que me diz «Meu general, há aqui
uma coisa importante: é necessário mandar prender o Almeida
Bruno, porque foi decidido aqui na reunião.» E eu: «Que
caraças! 0 Almeida Bruno?! Mas porquê? Ele também está
metido nisto, no 11 de Março?» «Está, julga-se
que sim, vai formar--se urna comissão para estudo disso, mas para
já é necessária a prisão preventiva do Almeida
Bruno...» 0 que é que eu fiz? Telefonei para casa do Almeida
Bruno, foi ele que veio ao telefone... «Eh pá, João,
tenho aqui um problema grave para te colocar. Acabo de receber um telefonema
duma assembleia que está a decorrer no Centro de Sociologia Militar,
nas Necessidades, para te dar ordem de prisão. Portanto, pergunto-te
uma coisa: tu, como oficial dos Comandos e de Cavalaria, pretendes ir para
o Regimento de Comandos, na Amadora, ou pretendes ir para Cavalaria 7 ?»
«Eh pá então prefiro ir para Os Comandos.» «Então
pronto, faz-me um favor, fardas-te, vais para a Amadora, apresentas-te
no Regimento de Comandos e dizes que estás debaixo de prisão
e que ficas lá a aguardar que sejas solto.» Pronto, foi isto
que eu fiz. Não me lembro de uma única iniciativa que tenha
tomado no sentido de prender fosse quem fosse.
EXP.- Da sua parte houve,
pelo menos, urna omissão total de iniciativa.
0.S.C.- Por vezes recusei.
No Conselho da Revolução. Uma vez por causa duns artigos
da Vera Lagoa publicados no «Diabo», em que se atacava violentamente
o Costa Gomes, o Pinto Freire disse no Conselho da Revolução,
na presença do Costa Gomes e sem que este ripostasse, o seguinte:
«Eh pá, ó Otelo, tens de mandar prender imediatamente
a Vera Lagoa! Já vistes os insultos que ela fez contra o nosso general?»
E o general dizia: «Pois de facto a Vera Lagoa...» E
eu disse: «0 quê"?! Prender a Vera lagoa? Então tens
de me dar uma ordem por escrito e eu, sim senhor, assino o mandato de captura,
mas eu prender a Vera Lagoa não mando prender...»
EXP. - Nunca pensaram prender Balsemão,
por causa do EXPRESSO?
0.S.C. - Não.
EXP. - Nunca sentiu que era um processo
que você já não controlava na totalidade?
O.S.C. - Se eu não assinasse
os mandados de captura, passava a ser eu o sabotador do processo revolucionário.
Custou-me muito mandar para a prisão malta minha amiga, o Monge,
preso em consequência do 11 de Março, etc. Mas... Houve coisas
que eu não consegui controlar de forma alguma, porque as pressões
eram muito grandes. No caso do litígio que tive com o D. António
Ribeiro, estava eu numa reunião do Conselho da Revolução
e quando fui tá falar, num intervalo, o homem apareceu-me
extremamente zangado porque já ali estava há bastante tempo
à espera. Diz-me: «Venho cá exigir a imediata
libertação de dois administradores da Rádio Renascença
que foram mandados prender à sua ordem!» Eu expliquei-lhe:
«Olhe, de facto fui eu que assinei o mandado de captura, porque sou
eu a personalidade que está autorizada a assiná-los, mas
nem sei que são os administradores nem porque estão
presos. Portanto, só a entidade que solicitou ao Copcon a prisão
é que pode pedir para serem soltos». «Então e
quem é essa entidade»? «Olhe, é o almirante Rosa
Coutinho!. Foi quem me solicitou a prisão das pessoas» «Então
eu desejo falar imediatamente com o almirante Rosa Coutinho!» E eu:
«Senhor cardeal, tenho um problema grave para lhe comunicar: é
que o almirante Rosa Coutinho foi ontem em visita oficial à Alemanha
Ocidental e só vem daqui a dias.» 0 homem ficou lixado : «Então
e não há ninguém que resolva este assunto?!»
E eu disse: «Não. Só o almirante Rosa Coutinho é
que pode dizer para os libertar, porque ele é que tem o processo
na mão, ele é que sabe porque é que os mandou prender.»
EXP. - Os poderes estavam completamente
dispersos... Então nem o Presidente da República, Costa Gomes
podia mandar libertar esses homens, não estando cá Rosa Coutinho?
O.S.C. - Não, porque não
queríamos beliscar as competências de uns e de outros. Se
ao Rosa Coutinho tinha sido cometido o estudo do processo da Rádio
Renascença, ele é que sabia quando é que os podia
mandar soltar. De facto, havia uma diluição muito grande
de poderes e eu ali era o peão das nicas, porque era o homem que
assinava os mandados de captura.
EXP. - E os mandados de captura
em branco?
O.S.C. - Eu tinha uma diversidade
de poderes, havia tanta coisa que eu tinha de fazer, dia e noite, que dispersava
a minha actividade por vários centros. Quando conseguia ir para
casa, para ver se descansava alguma coisa (eu dormia nessa altura, três,
quatro horas por noite), podia acontecer, como aconteceu frequentemente,
que houvesse necessidade de efectuar prisões. Dou um exemplo: sabotagem
económica. Aconteceu com frequência que chegava do aeroporto
pedido oficial ao Copcon para uma prisão de alguém que pretendia
sair do País e que, feita a revista às malas pela Guarda
Fiscal, se verificava que levava, sei lá, em notas, dez mil contos,
e levava ouro, jóias, etc. nas bagagens. Não se sabia quem
era a pessoa, porque não era dada a identificação
pelo telefone. Se isto acontecesse às três da manhã,
era um problema. 0 que é que eu passei a fazer?. Deixava dez mandados
de captura assinados, em branco, no cofre do Copcon. Se eles não
fossem utilizados durante o tempo de serviço, durante a madrugada
toda, no dia seguinte o oficial de serviço entregava-os ao chefe
da repartição de informações para recolherem
ao cofre. Se fossem utilizados, o oficial de dia comunicava: «Olhe,
estes não foram utilizados, mas estes foram. Foram feitas três
prisões durante a madrugada. Estão aqui os nossos exemplares.»
E, pronto, eram arquivados. Era assim. Tinha esta confiança nos
meus oficiais, e depois tinha de delegar nos Comandantes de Região.
0 Charais, o Pezarat, etc., assinavam também mandados de captura
em branco, por minha delegação. Não era eu que os
assinava, eram eles - «Pelo Comandante do Copcon», e assinavam
eles.
EXP. - A impressão que fica
é que, da parte dos partidos, havia urna ideia do País e
para que lado queriam ir; da parle do MFA, porém, caminhava tudo
um bocado sem rei nem roque...
O.S.C. - Julgo que sim, julgo que
tem razão ao afirmar isso. Não, vamos lá ver, não
tanto assim também. 0 MFA tinha um programa político, que
apresentou ao País em 26 de Abril. E todos nós estávamos
com esse programa político. Agora, o período revolucionário
abre perspectivas, entra-se na euforia de que tudo é possível,
da utopia. E tudo parece possível, até que, com os resultados
eleitorais para a Assembleia Constituinte, os partidos ganham urna força
muito grande, e o Partido Socialista sabe, nesse momento, o que vale e
para onde é que pode ir. Claro que os partidos têm o seu programa
e querem levá-lo por diante...
EXP. - E têm um pensamento
político estruturado que não havia na cabeça da maior
parte dos militares do MFA.
O.S.C. - 0 MFA está, de facto,
baralhado e vai dividir-se de acordo com as perspectivas partidárias.
A esmagadora maioria do MFA adere á perspectiva de Mário
Soares, do PS. Uns ao PSD, outros ao PS. Há alguns que aderem à
organicidade, aos esquemas disciplinados do PCP. E há outros mais
libertários, mais anarquistas, que não jogam, nem com o PS,
nem com o PSD, nem com o CDS, nem com o PCP, como é o meu caso,
e jogam em «libero».
EXP. - Em Maio de 75, na sequência
das privatizações, fez um discurso contra os partidos e defendeu
a liderança do MFA como «movimento de libertação».
Libertação de quê? O País já estava libertado
...
0.S.C. - Considero que 0 MFA foi,
de facto, um movimento de libertação. Libertação
de um povo que...
EXP. - Mas em Maio de 75 já
havia liberdade. 0 que é que ainda era preciso libertar? Parecia
que o MFA se queria libertar dos partidos.
0.S.C. - Podemos entender isso,
porque a partidocracia instalara-se, de facto, no País, e eu considero
que o povo fica demasiadamente sujeito e subordinado aos ditames partidários.
E é essa libertação que eu julgo que se tornaria necessária
para que o povo pensasse por si próprio e tivesse a possibilidade
de exprimir esse pensamento em assembleias populares.
EXP. - Ainda em Maio de 75, enquanto
o PCP tinha o «Diário de Noticias», «0 Século»,
a RTP, etc., parece que a área revolucionária que o Otelo
representa sentiu também necessidade de ter os seus meios de comunicação.
E há uma evidente cobertura do Copcon à ocupação
tanto do «República» como da Rádio Renascença.
0.S.C. - Há uma adesão
dos trabalhadores desses meios ao Copcon, mas não é
intenção do Copcon assumir como nossos esses órgãos.
EXP. - Mas vêem com alguma
simpatia a mudança de agulha nesses órgãos de informação.
0.S.C. - Sim ... Posso ver com simpatia
mas não tenho intenção de transformar o «República»
e a Rádio Renascença em órgãos de informação
ao serviço do Copcon. Longe de mim essa ideia.
EXP. - Logo a seguir, em Junho,
e aquela sua célebre frase, numa entrevista à Rádio
Renascença, de que porventura estaria arrependido de não
ter colocado os contra-revolucionários no Campo Pequeno...
O.S.C. - Não, a frase não
foi essa. Perguntam-me se nós estamos preocupados ou não
com o avanço que têm tido as forças contra-revolucionárias,
que assaltam, destroem, incendeiam sedes de partidos de esquerda, do Partido
Comunista, do MDP, de outros partidos de esquerda.. E eu digo: «Olhe,
estamos, de facto, muito preocupados. Isto está a ter um crescendo
muito grande, e oxalá que nós não tenhamos de meter
no Campo Pequeno os contra-revolucionários antes que eles nos metam
lá a nós. Com este crescimento da contra-revolução,
qualquer dia já estamos nós encostados à parede, e
eles liquidam-nos.»
EXP. - Não chega a dizer
que na Guiné, por exemplo, foram fuzilados os contra-revolucionários
?
O.S.C. - Nunca falei em fuzilamentos.
Nunca.
EXP. - Entretanto, no Verão
Quente forma-se urna tróica constituída por Otelo, Costa
Gomes e Vasco Gonçalves. E ela que dirige o MFA?
O.S.C. - Não chegou a funcionar.
Isso foi uma proposta do Marques Júnior, para evitar reuniões
constantes do Conselho da Revolução. Para decidir matérias
que não oferecessem grande controvérsia, o Costa Gomes podia
rapidamente chamar a Belém o primeiro-ministro e a mim. Mas houve
só uma tomada de posição desse directório,
em que eu perdi. Quando aparece o Documento dos Nove, o Vasco Gonçalves
propôs a retirada imediata do comando das regiões militares
ao Charais e ao Pezarat, que tinham assinado o documento, e eu sou absolutamente
contra isso. E perdi porque o Costa Gomes, curiosamente, também
alinhava nisso. O Costa Gomes também tinha ficado muito incomodado
com, o Documento dos Nove. É curioso que, mais tarde, aparece o
Costa Gomes apaparicado pelo Grupo dos Nove - até hoje...
EXP. - 0 Copcon, ai, já vinha
a ser acusado por elementos do MFA de ser um Estado dentro do Estado, ou
seja, emitia comunicados paralelos aos do Conselho da Revolução,
tinha iniciativas autónomas.
0.S.C. - Sim, era de facto um centro
de poder, reconheço isso. Mas havia uma dispersão tão
grande de centros de poder... Era o gabinete do primeiro-ministro, era
o Copcon, era o Conselho da Revolução, eram as regiões
militares... Era difícil saber onde é que estava a verdadeira
sede do poder. Eu procurei desesperadamente utilizar a fatia de poder que
me era concedida, no sentido de favorecer o mais rapidamente possível
o acesso dos trabalhadores ao poder.
EXP. - Diz que nesse Verão
Quente de 75 nunca pensou que houvesse o risco de uma guerra civil. Nunca
temeu que as divisões entre o Copcon, os militares ligados à
ala comunista e os militares ligados ao Documento dos Nove pudessem evoluir
para um confronto entre militares?
0.S.C. - Nunca admiti essa hipótese
porque, para mim, os valores morais e os valores de camaradagem, de amizade
e fraternidade superam todas as divergências.
EXP. - Isso é para si. Mas
acha que todos os militares se norteavam por esses valores?
0.S.C. - Eu não admitia,
também, que qualquer camarada meu tivesse na ideia encostar-me à
parede e fuzilar-me, ou coisa no género. Recordo-me que, há
tempos, estava a jantar em casa do Vítor Alves e a discutir exactamente
tudo isto, quando ele disse: «Eh pá, tu tiveste a possibilidade,
de facto, durante o PREC, de levar por diante a instauração
da democracia directa, do chamado poder popular. Mas, para que isso acontecesse,
precisavas de ter tornado uma posição extremamente forte:
encostavas à parede o Vítor Alves, o Melo Antunes, o Vasco
Lourenço, o Costa Neves, o Garcia dos Santos, o Eanes, etc., tipo
dia de S. Valentim, e liquidavas a malta toda. E aí tinhas a possibilidade
de a instaurar. A mulher dele levou aquilo a sério. «Ó
Vítor, estás a dizer que Otelo... Alguma vez imaginas isso
possível?» E o Vítor disse: «Não, não
acho possível, mas exactamente por isso é que o Otelo perdeu,
porque quis levar por diante um projecto que não era exequível
porque nós não alinhávamos. E como é evidente
o Otelo nunca levantaria um dedo contra nós, nós ganhámos.»
EXP.- No entanto, prendeu os seus
amigos Manuel Monge e Almeida Bruno.
O.S.C.- Prendi, não, mandaram-me
prendê-los. Eu também fui mandado prender pelo Eanes, em consequência
do 25 de Novembro.
EXP.- Mas não tem uma grande
amizade pelo general Eanes...
O.S.C.- Tenho, sim.
EXP.- Dá-se bem com Eanes
?
O.S.C.- Muito bem. E o Eanes tem
por mim uma estima e amizade muito grande. Nada daquilo que foi o percurso
político de cada um de nós influiu na amizade e na consideração
que temos uns pelos outros.
EXP.- Não cortou relações
com ninguém, nem ninguém cortou relações consigo
?
O.S.C. - 0 único Camarada
que cortou relações comigo e que eu protegi até
ao limite possível durante o PREC foi o Dinis de Almeida.
De resto, não tenho problemas com mais ninguém. Tive, da
parte do próprio Spínola, uma demonstração
para mim extraordinária: em 94, passou por cá o Yasser Arafat,
e o Mário Soares ofereceu um jantar na Sala dos Espelhos do Palácio
de Queluz em sua honra. A certa altura, vejo aparecer o marechal Spínola
e pensei: «Bem, já vou ter aqui um problema grave.»
Estávamos na conversa, o marechal aproximou-se do nosso grupo, a
sala era pequena e só havia um cadeirão na sala, forrado
a vermelho, onde ele se foi sentar. De repente, levanta-se do cadeirão
direito a mim.. «Com licença. Mas... mas você é
o Otelo!» E eu disse: «Pois sou, meu general. É o meu
nome, de facto.» «Mas que prazer tão grande que
eu tenho em vê-lo! Há quanto tempo não o via! Mas que
prazer tão grande!» Agarrou-me na mão e arrastou-me
por ali fora à procura da mulher, a D. Helena. «Maria Helena!
Olha quem é que está aqui!» Eu parecia o filho pródigo.
Bom, não satisfeito com isso, não me largou a mão
e quando vêm chamar para o jantar leva-me atrás. Ele era o
primeiro na lista do protocolo que vai sendo anunciada: «Senhor marechal
António de Spínola e esposa!» E, levado pela mão,
entro eu como segunda figura protocolar. 0 responsável do protocolo
fica aflito, a olhar para mim. .. «Major...?» E eu: «Tenente-coronel.»
«Tenente-coronel Otelo Saraiva de Carvalho!» E entro na Sala
dos Espelhos.
EXP. - São as originalidades
do 25 de Abril e dos revolucionários à portuguesa: não
dão tiros uns nos outros, continuam amigos apesar de se prenderem...
O.S.C.- Sim... Prevaleceram sempre
nas nossas relações elos muito fortes firmados pelo risco
comum que corremos para derrubar o regime...
EXP. - E também a guerra...
O.S.C.- A guerra, a nossa guerra
...
EXP. - É urna coisa que aproxima
muito.
O.S.C.- É. E, depois de tudo
que tínhamos passado, envolvermo-nos numa guerra Civil estava completamente
fora de propósito, era uma coisa de uma irresponsabilidade tão
grande que a mim nunca me passou pela cabeça.
EXP. - Porque não assinou
o Documento dos Nove?
O.S.C. - Primeiro, porque não
me foi pedida a assinatura.
EXP. - Por ninguém?
O.S.C. - Por ninguém. Eu
fui colocado perante o Documento dos Nove quando estava a entrar para um
«aviocar», no aeroporto militar, eu e o Fabião. O Vasco
Lourenço foi lá ao aeroporto para o entregar a cada um de
nós. «Gostava que vocês tomassem conhecimento deste
documento que nós elaborámos.»
EXP. - Esse documento foi uma surpresa
total para si?
O.S.C. - Total. E o meu espanto
foi grande quando soube depois que aquilo foi logo publicado no «Jornal
Novo» e que tinha circulado pelas unidades para recolher assinaturas.
Até que eu fiquei um bocado agastado com isso.
EXP. - Mas noutras circunstâncias
assinaria esse documento?
O.S.C. - Era capaz de não
ter assinado, porque era um documento de crítica bem elaborada e
correcta à situação que se vivia mas que não
abria perspectivas nenhumas, não abria alternativas, não
dizia: «Isto está mal e devemos fazer assim.» E foi
por isso que eu promovi imediatamente a elaboração do chamado
Documento do Copcon, como resposta a esse.
EXP. - Quem é que escreveu
o Documento do Copcon?
O.S.C. - Pedi ao major Tomé
para criar um grupo de trabalho, juntamente com um oficial ou dois do Copcon
– o Dias Ferreira, creio eu, e não sei se mais alguém.
EXP. - Sentiu que, de alguma forma,
o PCP nessa altura se encostou a si?
O.S.C - 0 PCP encosta-se, de facto,
ao Copcon, porque o Documento dos Nove vai atingir essencialmente Vasco
Gonçalves e o PCP. 0 PCP aí sente-se um bocado desamparado
e vai tentar estabelecer uma aliança táctica com o Copcon...
EXP. – É nessa altura
que tem um jantar com o Álvaro Cunhal?
O.S.C. - Não, isso já
tinha sido antes. Foi aqui na Quinta da Figueirinha, em casa do Silva Graça.
Um dia ele pede-me para ir lá a casa jantar e quando cheguei estava
lá o Álvaro Cunhal. Foi o próprio Silva Graça
a servir o jantar, à porta fechada, só estava eu e o Álvaro
Cunhal.
EXP. - Foi aí que o conheceu?
O.S.C. - Já se tinha encontrado
comigo no Copcon. Pediu-me uma audiência e eu falei com ele.
EXP. - Qual era o objectivo do jantar?
O.S.C.- Ele queria manifestar-me
uma preocupação muito grande relativamente ao curso dos acontecimentos.
Julga que há em marcha uma contra-revolução e quer
induzir-me a tomar medidas. Defende que as grandes conquistas já
alcançadas deveriam ser consolidadas e que é preciso travar
a contra-revolução, senão a revolução
estará perdida.
EXP. - Foi o único encontro
a sós que teve com Álvaro Cunhal?
O.S.C. - 0 encontro-surpresa foi
esse, de facto, em casa do Silva Graça. Para trocar impressões
sobre a situação política, para ele fazer críticas
ao MFA - o que me deu oportunidade também de tecer críticas
ao PCP. Ao todo, foram aí uns três encontros.
EXP. - E contactos com outros dirigentes
do PCP? Tinha ou não?
O.S.C. - Tinha. Com dois dirigentes
do Comité Central - o Jaime Serra, que algumas vezes se deslocava
ao Copcon, e o Raimundo Narciso, alem do Rogério de Carvalho, que
frequentemente se reuniu comigo para me dar indicações sobre
matéria contida na documentação da PIDE-DGS que ele
ia vendo.
EXP.- No 25 de Novembro há
urna movimentação dos pára-quedistas que é
do conhecimento de Otelo e do Copcon, com a ocupação de várias
bases.
O.S.C. - Não é do
meu conhecimento antecipado. Desconheço completamente que os pára-quedistas
vão ocupar bases na sua luta contra o Morais da Silva. Só
venho a ter conhecimento de que essa ocupação das bases poderá
vir a realizar-se cerca das 5 da manhã do dia 25. Quando termina,
às quatro e meia da manhã, uma reunião extraordinária
do Conselho da Revolução, eu passo pelo Copcon. Sabia que
estava aquela malta toda em polvorosa à minha espera, e vou lá
dizer-lhes qual tinha sido a sentença final. Quando acabo de explicar
que, de facto, prescindi do lugar de comandante da Região Militar
de Lisboa, que vai ser entregue ao Vasco Lourenço, o Costa Martins,
da Forca Aérea, que estranhamente lá apareceu, é o
primeiro a tomar a palavra para dizer alto e bom som que os pára-quedistas
não aceitam essa situação e que vão ocupar
as bases aéreas e o Comando da Região Aérea. Isto,
a mim, causa-me urna estranheza muito grande, e pergunto-lhe: «Então,
mas porquê? 0 que é que os pára-quedistas têm
a ver com isto? Isto aqui é o Comando da Região Militar de
Lisboa, e eu continuo como comandante do Copcon. Eles são da Força
Aérea, portanto, não têm nada a ver com isto.»
«Eh pá, mas isto que eu te estou a dizer é verdade,
vai acontecer.» Deitei-me eram seis e meia da manhã ou coisa
do género, e cerca das onze e meia da manhã acordado por
um telefonema do meu chefe de Estado-Maior, o Artur Baptista que me pede
a rápida comparência no Copcon porque algo de grave se está
a passar. Eu pergunto: «Mas o que é que foi ?» «São
problemas da Força Aérea, mas que podem ser extremamente
preocupantes.» Tão rapidamente quanto possível arranquei,
fui para o Copcon, e o Artur Baptista explicou-me: «Meu general,
na madrugada de hoje, às cinco e meia da manhã, as bases
aéreas foram todas ocupadas, o Estado-Maior da Força Aérea
e o Comando da Região Aérea. Está preso o Pinto Freire,
no Cornando da Região Aérea, e a situação é
extremamente grave.» E eu disse: «Caraças, então
aquilo que o Costa Martins dizia confirmou-se.» Fui para Belém,
apresentei-me ao Costa Gomes, que me chamou de lado e disse: «Otelo,
ainda bem que chega! Estava aqui preocupadíssimo com a sua ausência.
Você já sabe o que se está passar? Mandei cá
chamar o Costa Martins disse-lhe para ser portador da seguinte proposta
junto dos pára-quedistas: eles abandonam já as bases
aéreas que estão a ocupar, regressam todos a Tancos, e amanhã
eu e o Otelo vamos a Tancos e proponho-lhes que abandonem a Força
Aérea, regressem ao Exército e constituam urna força
organizada às ordens do Copcon. O que é que o Otelo acha
disso?» E eu disse: «Acho óptimo.» Mas o Costa
Martins nunca mais apareceu no Palácio de Belém, desapareceu
das vistas a partir daí. Portanto, o Costa Gomes esperou... eram
duas, duas e meia da tarde. 0 Costa Gomes resistiu às pressões
do Vasco Lourenço para desencadear a operação que
o Eanes tinha preparado e aguentou até às quatro horas, mas
o Costa Martins não apareceu. Nessa altura, o Costa Gomes deu luz-verde
para o arranque da acção. Os Comandos foram para a Calçada
da Ajuda, como se sabe, dominaram a Polícia Militar, mas nenhuma
das unidades sob o meu comando saiu, porque eu não dei ordens a
ninguém para sair. Ficaram aquarteladas, à espera dos acontecimentos,
a ver como aquilo evoluía. Quando os comandos começam a atacar
a Polícia Militar, esta reage e dão-se os cinco mortos. Também
há uma iniciativa do Dinis de Almeida, que sai com chaimites do
RALIS, à revelia de qualquer ordem que Ihe tivesse sido dada. As
indicações minhas eram para aguentar. Eu estava em Belém
e recebo, por exemplo, uma chamada do capitão Rosado da Luz, que
comandava o forte de Almada, em pânico, a dizer--me: «Meu general,
estão aqui a cercar o forte de Almada! Sei lá, eles devem
ser para aí uns dez mil operários do Alfeite, da Setenave,
da Lisnave, estão aqui a exigir a entrega de armas. 0 que é
que eu faço? Abro os portões? Dou armas, não dou armas?
E eu disse: «Eh pá, não distribuis nem um canivete,
nada! Porque se dás uma arma a alguém temos para aí
um granel desgraçado neste País.»
Portanto, foi dada a indicação
para que ninguém se mexesse. 0 Dinis de Almeida resolve, por sua
iniciativa, lançar-se na aventura de ir tentar contrariar os comandos,
mas isso ou foram iniciativas isoladas ou então havia um plano congeminado
- que eu estou convencido de que havia.
EXP. - Dinis de Almeida e Costa Martins
eram ligados ao PCP. Depois há os operários da cintura industrial
a pedirem armas...
0.S.C. - E havia uma influência
muito grande do PCP na área dos sargentos pára-quedistas.
EXP.- O que acha que o PCP queria?
0.S.C. - Eu julgo que o PCP estava
a procurar aproveitar a luta dos páras, provocar a destituição
do Morais e Silva, tentar obter um reequilíbrio a nível do
Conselho da Revolução, donde tinham saído oficiais
profundamente ligados ao PCP: 0 Vasco Gonça1ves, o Corvacho. Contaram,
possivelmente, com a minha adesão ao processo. Simplesmente, eu
estava completamente desinformado daquilo e procurei evitar que houvesse
confrontos. Foi por isso que me dirigi a Belém e não tomei
qualquer atitude ofensiva. Procurei foi acalmar as bases e manter a malta
sossegadinha.
EXP. - Nunca pensou sair de Belém,
ir para o Copcon?
0.S.C. - Não me foi concedida
essa possibilidade.
EXP. - Portanto, estava preso.
0.S.C.- Não estava preso,
estava era retido, de facto, em Belém. Alguém me disse, um
coronel qualquer: «Bem, tu agora não podes sair daqui. Estás
aqui retido e vais aqui aguentar enquanto tudo isto se estiver a desenrolar.»
EXP. - Acaba aí o processo
revolucionário do 25 de Abril?
0.S.C. - Sim, é evidente.
O processo revolucionário fica travado, definitivamente, com o 25
de Novembro. Mas não se pode dizer que o 25 de Abril morreu no 25
de Novembro, porque a perspectiva que nós, MFA, tínhamos
do 25 de Abril era exactamente o derrube e a substituição
da ditadura pela instauração de uma democracia política
representativa, parlamentarista, como aquela que existe hoje.
EXP. - 0 que morreu no 25 de Novembro
foi o 11 de Março?
0.S.C. - O 11 de Março não
tinha sustentação nenhuma em termos políticos. 0 que
morreu no 25 de Novembro foi, de facto, o processo revolucionário.
Mas os meus camaradas tinham razão: o 25 de Novembro pretendia a
retomada da pureza do espírito do 25 do Abril, e essa foi retornada.
EXP. - Portanto, 0 PREC foi um desvio.
0.S.C. - 0 PREC alterou as perspectivas
político-ideológicas que em nós existiam no 25 de
Abril de 74. O PREC permitiu essa alteração e, portanto,
dá abertura a outros horizontes, outras portas. Nós sabíamos
que o caminho era a democracia representativa, mas a certa altura perguntámos:
«E porque não experimentar isto? Vamos ver, assembleias populares.
Porque não comissões de trabalhadores? Porque não
ocupação de terras?» Com o 25 de Novembro voltou-se
à estrada principal, acabou o desvio e voltou-se à estrada
principal...
EXP. - Era muito imediatista, agia
sem ter uma visão de longo prazo.
0.S.C. - Certo. É verdade
que não tinha essa visão de longo prazo. Julgava possível
ter-se criado, na altura, um novo Estado popular, com um regime de democracia
directa.
EXP. - Na parte final do processo
revolucionado parece que abdica da iniciativa, fica à espera de
que sejam os outros a decidir, de que sejam os Nove ou o PCP a tomar a
iniciativa.
0.S.C. - Não. Eu procurei
comer até ao fim a fatia de poder que me tinha sido dada. Sabendo
que tinha de acontecer um qualquer 25 de Novembro, procurei levar tão
longe quanto possível o que podia fazer. Dado o meu isolamento no
seio do MFA, não tinha qualquer capacidade de resistir, a não
ser que me encaminhasse para a guerra civil.
EXP. - E isso, para si, estava completamente
excluído?
0.S.C. - 0 Varela Gomes, por exemplo,
que aparece no Copcon na tarde do dia 25 de Novembro, é de opinião
que eu devia ter encaminhado o País para a guerra civil, porque
rapidamente ganhávamos a situação. Mas nunca me passou
pela cabeça essa hipótese. Enquanto o Eanes – ainda há
dias disse isso ao Vasco Lourenço - mandou distribuir armamento
a civis, eu recusei sempre a distribuição de armas fosse
a quem fosse.
EXP. - Mesmo a elementos do PRP,
no Nordeste, em Bragança?
0.S.C. - Nada, nada. Nunca distribui
armamento nenhum a ninguém.
EXP. - E aquelas armas do capitão
Fernandes?
0.S.C. - Foi o capitão Fernandes!
Foi o capitão Fernandes que, independentemente de qualquer conhecimento
meu, deu descaminho a essas armas.
EXP. - Como surgiu aquela sua frase
muito repetida, segundo a qual o Cavalo do poder lhe passou várias
vezes à porta mas nunca o montou?
0.S.C. - Foi numa entrevista a um
jornalista brasileiro. E dei vários exemplos. Fui por duas vezes
instado pelo general Spínola, urna primeira vez pelo Costa Gomes,
para a promoção a general de quatro estrelas. Podia ser hoje
um general de quatro estrelas na reserva, a gozar a reforma, e recusei
sempre isso. Fui instado pelo Vasco Gonçalves para o substituir
como primeiro-ministro no VI Governo Provisório - recusei. Fui instado
pelos Nove para substituir o general Costa Gomes na Presidência da
República - recusei. Fui instado pelo PS para ser cabeça-de-lista
em eleições parlamentares - recusei. De facto, nunca tive
apetência nenhuma pelo poder pessoal.
EXP. - Tinha uma grande simpatia
pela revolução cubana. Ainda tem?
0.S.C. - Não tinha uma grande
simpatia pela revolução cubana. Tinha uma admiração
muito grande pelos guerrilheiros da Sierra Maestra e pela luta extraordinária
que eles desenvolveram contra
o regime de Fulgêncio Baptista,
transformando a colónia americana de Cuba num país independente
e orgulhoso de si próprio. Agora, o regime Cubano - se é
a isso que se querem referir - não tive por ele qualquer admiração,
nem tenho. Tive uma enorme admiração por um homem que foi
Che Guevara.
EXP. - Se vivesse hoje em Cuba não
sentiria a opressão da falta de liberdade e a necessidade de fazer
lá um 25 de Abril?
O.S.C.- Não sei quais são
as circunstâncias que se vivem em Cuba e qual é o tipo de
opressão. Julgo que, de facto, é um regime extremamente repressivo,
do tipo soviético, e o regime soviético sempre foi para mim
profundamente negativo.
EXP. - Destes 25 anos do 25 de Abril
que se comemoram, passou mais de cinco na prisão. Acha que foi um
preço elevado pelos caminhos aventureiros em que se envolveu no
PREC e depois do PREC?
O.S.C. - Acho que foi demasiadamente
elevado, porque é sempre injusta uma punição quando
não se cometeu o crime que nos é imputado. Fui punido com
20 dias de prisão disciplinar agravada em 76, eu que era um oficial
exemplar, só por pretensas declarações minhas que
vinham estampadas nos jornais. Já tinha sido punido com 44 dias
de prisão preventiva em consequência dos acontecimentos do
25 de Novembro, também injustamente, porque não participei
em quaisquer acontecimentos do 25 de Novembro de 75. E, finalmente, sofri
cinco anos de prisão preventiva (e continuo sempre a defender esta
afirmação, porque até hoje o processo não transitou
em julgado) quando não tive nada a ver com qualquer acção
praticada pelas FP-25. Nenhuma, nada. Nem nenhum assalto a banco, nem nenhuma
colocação de bomba, nem nenhum homicídio, não
tive nada a ver com isso. Mas o Partido Comunista, no interior da Polícia,
entendeu utilizar esse meio para destruir qualquer possibilidade de eu
e a FUP participarmos em eleições parlamentares e na eleição
presidencial. Não tenho dúvida nenhuma em dizer isto.
EXP. - Disse, em tempos, a seguinte
frase: «Ainda está longe o dia em que eu seja uma mera figura
decorativa.» Acha que já chegou ou não esse dia?
O.S.C. - Continuo a considerar que
ainda não estou na prateleira das figuras decorativas. E, aliás,
tenho provas permanentes disso em tudo o que diga respeito ao 25 de Abril.
EXP. - Para terminar: a memória
é o que resta da sua revolução?
O.S.C. - Sim, a memória extremamente
gratificante e a tentativa através das palestras e conferências
que faço de transmitir a verdade e a mensagem do 25 Abril. Tenho
saudades muito grandes do processo revolucionário. Naquilo que os
meus 62 anos me permitiram viver, foi o único período em
que o português - a tal entidade a abstracta que é o
povo - se sentiu, de facto, participante na vida política do País,
em que havia um fogo, uma exaltação, em que a asneira era
livre, mas em que tudo parecia possível. A tomada do poder estava
ali à mão, o povo agarrado à liberdade, e sentia algo
de muito forte, de muito participativo, que actualmente não se verifica,
porque as democracias representativas eliminam esse sentimento de participação
activa, a democracia política passou a ser apenas o voto. As pessoas
sentem-se afastadas das responsabilidades políticas, tem um
poder crítico muito grande em relação ao que se vive
no País, mas não participam. Eu, pelo contrário,
crítico muito pouco, e procuro sempre exaltar, sobretudo no estrangeiro,
o que de bom foi feito em consequência do 25 de Abril - e também
do 25 de Novembro, que carreou, trouxe para os carris da pureza do 25 de
Abril o que existe hoje em Portugal e o prosseguimento da democracia representativa.
(In Revista "Expresso" – 17/04/1999) |