Herói ou vilão, não
meio termo.
As opiniões sobre Otelo Saraiva
de Carvalho extremam-se entre dois pontos.
Um dia, Salgado Zenha chamou-lhe
«adolescente imaturo».
Ele ofendeu-se, claro.
Mas quem percorrer as páginas
que se seguem decerto vai lembrar-se da expressão de Zenha.
O que temos aqui é um relato
na primeira pessoa de História vivida por um dos protagonistas de
maior peso no período revolucionário que se seguiu ao 25
de Abril.
E o leitor há-de interrogar-se
amiúde: onde estaríamos hoje se este homem tivesse montado
o cavalo do poder, que, segundo afirma, lhe passou à porta mais
de uma vez??
xpresso O então major Otelo foi
o último a sair do Posto de Comando da
Pontinha, já no dia 26 de Abril, às 13 H 30 da tarde. Nessa
altura o que sentiu ?? Era o
momento da solidão do vencedor ??
OTELO SARAIVA DE CARVALHO
Pensei isto exactamente: «Esta malta foi-se toda embora e deixou-me
aqui sozinho!». De modo que fui eu que arrumei a casa: guardei as
granadas e as pistolas que tinham ficado ali soltas em cima das mesas,
fechei as gavetas, retirei a minha carta do ACP que me tinha servido de
mapa para acompanhar as operações das unidades da MFA, e
pronto. Apaguei a luz, fechei a porta, meti-me no carro e fui para casa.
EXP. - E o que fez a seguir ?
O.S.C. Cheguei a casa, tomei um
banho, fiz a barba já com a barba de dois dias e fui com a minha
mulher, calma e tranquilamente, almoçar a um restaurante em Paço
de Arcos. Propus-lhe então que fossemos ver a libertação
dos presos de Caxias. A libertação não foi imediata,
demorou algum tempo, porque havia dúvidas, por parte do general
Spínola e da Junta de Salvação Nacional, em libertar
alguns presos. O mais polémico terá sido talvez o Hermínio
da Palma Inácio, que Spínola classificava como
delinquente de delito comum. Entretanto, os fuzileiros estavam já
em Caxias, tinham tomado conta da situação. A prisão
de Caxias era um objectivo que ficara sem ser conquistado, porque uma das
unidades do MFA, o Regimento de Infantaria 1 da Amadora, falhou. Já
eu estava no Posto de Comando, no dia 24, quando tive a notícia
que as duas companhias desse regimento não entravam em operações.
Quer a sede da PIDE na António Maria Cardoso quer o Forte Militar
de Caxias não foram conquistados. Enfim, fiquei ali a acompanhar
a movimentação até que, a certa altura, cansado como
estava, resolvi ir para casa. Peguei no carro e, quando descia pela rampa,
os fuzileiros mandaram-me parar. Havia ali uma multidão ululante,
profundamente antifascista, que cresceu para o carro, rodeou-o e desatou
aos gritos: «É pide, ele é pide !». Eu ia à
paisana com a minha mulher, vi o caso um bocado mal parado, mas exibi o
meu cartão aos fuzileiros e deixaram-me passar. Aqueles milhares
de pessoas passaram então rapidamente do «É pide! É
pide» para o «MFA! MFA!», e lá saí
daquela opressão que de repente se abateu sobre o carro.
EXP.- Nesse dia de 26 de Abril de
1974 tinha noção que havia mudado já radicalmente
o País e de que a sua vida também ia mudar decisivamente?
O.S.C. Não tinha. De facto,
não tive essa noção. Quer no dia 25 de Abril, quer
nos dias que se seguiram, não tinha a noção da dimensão
daquilo que tínhamos acabado de fazer.
Logo a seguir o dia 25 foi uma
Quinta-feira meteu-se o fim de semana, e eu, na Segunda-feira seguinte,
apresentei-me na Academia Militar, onde era professor adjunto de táctica
de artilharia, para continuar a dar as minhas aulas. E estava eu já
tranquilamente a dar as minhas aulas enquanto o tumulto da Revolução
corria cá fora quando fui intimado pelos meus camaradas, sobretudo
pelo Vasco Lourenço, que já tinha regressado dos Açores,
a apresentar-me rapidamente na Cova da Moura, porque agora é que
as coisas iam começar, agora é que era necessário
assumir responsabilidades. E pronto, perante essa intimação,
apresentei-me na Cova da Moura. Ninguém me conhecia a não
ser os meus camaradas que tinham estado directamente envolvidos comigo
no MFA, e indicaram-me um centro de operações para eu me
apresentar. Fui bater à porta ... era confidencial, secreto, estavam
ali a comandar-se as operações de todas as movimentações
das tropas pós-25 de Abril e abriu-me a porta um capitão
da Força Aérea que me perguntou: «O que é que
tu queres, pá?» «Disseram-me para me apresentar aqui,
no centro de operações...» «Pois, mas isto aqui
está cheio, já não tens lugar. Podes ir-te embora.
Vê aí outro sítio qualquer onde possas caber».
Eu não conhecia esse capitão da Força Aérea,
ele também não me conhecia a mim, mas, perante o meu ar perguntou-me:
«Como é que te chamas?» «Sou o Otelo Saraiva de
Carvalho». «Ah, Tu é que és o Otelo? Então
entra». Era, vim a saber depois, o capitão Tomás Rosa.
EXP.- Qual foi para si o momento
decisivo do 25 de Abril, em termos de operação?
O.S.C. O momento decisivo foi
a rendição do Governo. Era uma coisa esperada, nós
já tínhamos tudo na mão, a vitória era óbvia,
mas faltava o Governo ajoelhar-se, render-se, dizendo: «Sim senhor,
perdemos, e o poder é vosso. O poder é do MFA». E isso
aconteceu cerca das 19 h 30m do dia 25. Esse momento de entrega do
poder foi precedido de um telefonema do general Spínola para mim,
para o posto de comando. O general disse-me que tinha acabado de receber
um telefonema do professor Marcello Caetano, que se encontrava no Largo
do Carmo, no quartel-general da GNR, pedindo-lhe para ele ali se deslocar
e lhe ser entregue o poder, para evitar que o poder caísse na rua.
Spínola disse-me ter informado Marcelo Caetano de que não
pertencia ao Movimento, não tinha nada a ver com o desenvolvimento
das operações militares e teria de contactar o comando da
MFA. Perguntou-me então se eu autorizava, qual era a minha intenção
relativamente a esta questão, e eu mandatei-o para se deslocar ao
Largo do Carmo e receber o poder das mãos do professor Marcelo Caetano.
Isto porque o general Spínola, juntamente com o general Costa Gomes,
tinham sido os dois oficiais generais indigitados pelo MFA, na reunião
de 1 de Dezembro de 1973, em Óbidos, para virem a fazer parte de
uma Junta de Salvação Nacional.
EXP:- Não tinha ficado definido
qual deles seria o presidente?
O.S.C. Não. Como a questão
da antiguidade na instituição militar é sempre um
ponto fundamental, para nós era claro que Costa Gomes, sendo general
primeiro de que Spínola assumiria logicamente as funções
de Presidente da República. E aí julgo que prevaleceu muito
a sageza do general Costa Gomes que, na circunstância que estávamos
a viver, considerou mais importante ficar com o comando das Forças
Armadas do que com o balcão político da Presidência.
Por outro lado, isso conjugava-se com o anseio de há muito tempo
demonstrado pelo general Spínola de vir a ser Presidente da República.
E, assim, facilmente Costa Gomes empurrou Spínola para a Presidência,
ficando ele na chefia do Estado-Maior General das Forças Armadas.
EXP.- Mas o Movimento não
teve a ver com isso? Foi tudo decidido entre os dois?
O.S.C. Foi decidido entre eles,
como o general Costa Gomes mais tarde revelou, dizendo que não tinha
apetência nenhuma pela Presidência da República, interessava-lhe
era regressar às suas funções no estado-maior General
das Forças Armadas. E entregou de bandeja a Presidência ao
general Spínola.
EXP.- E qual foi o momento que o
fez sentir maior apreensão no 25 de Abril ?
O.S.C.- Tive duas ocasiões:
uma primeira às quatro horas da manhã de 25, quando nos faltava
ainda conquistar um objectivo importante, e sem isso não podia emitir
o primeiro comunicado do MFA. Esse objectivo era o Aeroporto de Lisboa,
para evitar o levantamento e aterragem de quaisquer aviões que,
a nível do Pacto Ibérico, pudessem vir ainda em apoio do
professor Marcello Caetano. Foi por isso que também procurei guarnecer
todas as fronteiras terrestres com tropas, para evitar que houvesse movimentação
militar ou de civis através das fronteiras terrestres. A missão
estava cometida à Escola Prática de Infantaria, mas a coluna
que veio de Mafra para conquistar o aeroporto meteu-se por caminhos ínvios
e foi parar a Camarate, andou por ali perdida com viaturas pesadíssimas
a fazer manobras em cotovelo e estava atrasadíssima. Nessa altura,
encontrava-se sozinho no aeroporto o capitão Costa Martins, da Força
Aérea, que teve uma actuação brilhante e extremamente
corajosa. Quando tive a comunicação, com alívio, de
que o aeroporto já estava cercado e tomado pelas forças do
MFA, dei indicação ao major Costa Neves, que controlava o
grupo de assalto ao Rádio Clube Português, para emitir o primeiro
comunicado do MFA.
EXP.- E o segundo momento de apreensão?
O.S.C.- O segundo momento foi o
regresso da fragata que estava integrada na esquadra da NATO, quando ela
começou a subir de novo o Tejo para ir tomar posição
à frente do Terreiro do Paço, com as peças em posição
de fogo embora o almirante Louçã (pai do Francisco Louçã)
me tenha mais tarde garantido que dirigiu as peças para o ar, como
sinal que não estava disposto a disparar sobre as forças
terrestres que ocupavam o Terreiro do Paço.
EXP.- E quando a PIDE disparou sobre
os manifestantes?
O.S.C.- Aí está uma
consequência de a António Maria Cardoso não ter
sido ocupada em tempo oportuno. Se o nosso camarada do MFA do Regimento
de Infantaria 1 da Amadora tivesse tido a coragem de levar por diante a
acção, nós poderíamos ter ficado com todo o
bloco de informação da PIDE toda aquela documentação
que a PIDE teve oportunidade de destruir antes da tomada da sede. E, perante
a força que a manifestação popular na António
Maria Cardoso estava a ter, os elementos da PIDE acabaram por disparar
sobre a população. Isso podia ter sido evitado.
EXP.- Assistiu na Pontinha à
comunicação da Junta de Salvação Nacional pela
televisão ?
O.S.C.- Assisti na Pontinha
através da televisão. Não estava na sala porque, já
na noite de 25, quem se foi reunir com os elementos que iam integrar a
Junta de Salvação Nacional foram camaradas meus do meu grupo
político, que o Vítor Alves tinha constituído e que
iria coordenar toda a discussão sobre a política do MFA:
o comandante Vítor Crespo, o tenente-coronel Charais, o coronel
Vasco Gonçalves, etc.
EXP.- Já conhecia o general
Spínola. Tinha confiança no general para ser ele a pegar
no leme a partir dali ?
O.S.C.- Eu tive um permanente contencioso
com Spínola na Guiné. Não era um homem spinolista,
nunca fui, não pertencia ao círculo spinolista, não
tinha sido requisitado pelo general, apareci lá em 1970 em rendição
individual para desempenhar funções. Uma das últimas
funções que desempenhei, antes do meu regresso e do regresso
dele a Lisboa, em 1973, foi a preparação das cerimónias
de 10 de Junho. E aí tive, mais uma vez, um problema grave com ele.
A certa altura, o Spínola, não sei porquê na altura
pareceu-me uma birra -, decidiu não impor a condecoração
a um militar negro das milícias. «Passe a outro», disse-me.
Eu consultei a revista e repeti-lhe: «Mas é o meu general
que o deve condecorar...» Ele recusou completamente: «Mas
já lhe disse que não o condecoro». E fez para ali um
teatro desgraçado. Fiquei um bocado atrapalhado, até que
avançou ... não sei se o Pedro Cardoso para impor a condecoração.
O Almeida Bruno explicou-me mais tarde que eu tinha incorrido num erro
grave: é que o homem a condecorar era um palmo em altura bem maior
que o Spínola e ele tinha de se pendurar nele para lhe pôr
a condecoração... Foi o último contencioso que
tive com ele. Mais tarde, quando subiu a vice-chefe do estado-maior General
das Forças Armadas, eu e o Vasco Lourenço fomos encarregados
de dizer que o MFA estava em movimento e que ele e o general Costa Gomes
tinham sido eleitos para uma futura Junta de Salvação Nacional,
se o Governo viesse a cair perante as nossas reivindicações.
EXP.- E esses contactos correram
bem ?
O.S.C.- Correram bem. Spínola
viu no Movimento uma alavanca de apoio importante para, finalmente, atingir
a Presidência da República. Tinha batalhado por isso durante
anos. Esteve rodeado na Guiné por uma equipa excelente de oficiais
que montaram e puseram ao seu serviço um sistema de propaganda assinalável,
dando-lhe um prestígio, a nível nacional e internacional,
muito elevado.
EXP.- Nessa reunião de Óbidos,
em Dezembro de 73, Spínola não foi o mais votado, foi Costa
Gomes.
O.S.C.- Exactamente.
EXP.- E houve uma terceira figura
muito votada, que foi Kaúlza de Arriaga ...
O.S.C.- Foi nessa reunião
que se passou de movimento de capitães a movimento de oficiais das
Forças Armadas. Estavam já presentes elementos da Força
Aérea e da Marinha, como observadores. Começaram a integrar-se.
É por isso que aparece o nome de Kaúlza, fundador dos pára-quedistas
em Portugal. Foi um elemento também votado, mas era impensável
a sua integração na Junta de Salvação Nacional.
EXP.- Surpreendeu-o ver Spínola
aparecer com presidente da Junta ?
O.S.C.- Pensei: «Mais uma
vez, o general lá conseguiu empalmar o general Costa Gomes».
Mais tarde compreendi que não tinha sido assim, que tinha sido o
contrário.
EXP.- Voltando um pouco atrás:
um mês e pouco antes do 25 de Abril, há dois acontecimentos
decisivos: as demissões de Spínola e Costa Gomes e, no dia
a seguir, o golpe falhado das Caldas. Nunca teve medo, sendo já
tão conhecida a movimentação dos capitães e
oficiais, que a PIDE ou os serviços de informação
desmantelassem o MFA, ao longo de todo aquele mês que decorria
até ao 25 de Abril ?
O.S.C.- Tive receio, sobretudo,
a partir de 16 de Março. Já fora sintomático que,
três dias do plenário do MFA de 5 de Março, em Cascais,
o Vasco Lourenço e mais três capitães do movimento
tivessem sido transferidos subitamente das suas unidades. Dos quatro, o
importante era o Vasco Lourenço: eu, ele e o Vítor Alves
constituíamos a direcção executiva, o núcleo
forte do movimento. Essa transferência trazia água no bico,
dava indicação de que pelo menos a PIDE já saberia,
através de conversas telefónicas, de escutas ou de documentação
que tivessem eventualmente apanhado, que aqueles quatro elementos eram
do Movimento. Parecia haver aqui uma táctica de dispersão,
de começar a separar figuras. Depois, na noite de 15 para 16 de
Março, eu estive por duas vezes quase a ser preso pela PIDE.
A primeira quando foi com o Vítor
Alves a casa do Almeida Bruno, no Monte Estoril. Eu fiquei no carro, e
o Vítor Alves foi falar com a mulher do Almeida Bruno. Saímos
de lá e soube mais tarde que o capitão Farinha Ferreira,
afilhado de casamento do Bruno, fora a seguir a casa do padrinho e nem
chegara a entrar porque a PIDE já lá estava. Apanharam o
Farinha Ferreira, amarram-no a uma árvore, fizeram-lhe perguntas
e levaram-no preso. Essa foi uma primeira escapadela que eu tive
à PIDE. Entretanto, nas deambulações que tive de fazer
para o 16 de Março, uma das coisas foi ir a Mafra ver se conseguia
trazer uma ou duas Companhias da Escola Prática de Infantaria. E
vim de lá de mãos vazias, porque era fim-de-semana.
EXP.- Quer dizer que ainda tentou,
à última da hora, que o 16 de Março fosse para a frente.
O.S.C.- Eu participei activamente
no 16 de Março.
EXP:- Mesmo sem grande planeamento.
O.S.C.- Não havia plano nenhum,
de facto. Havia um plano de operações que não era
nada. O 16 de Março foi lançado para tentar evitar a «brigada
do reumático» (a apresentação dos generais e
almirantes perante Marcello Caetano) e, numa última e desesperada
tentativa, para tentar fazer recuar a exoneração de Spínola
e Costa Gomes. A primeira acção era para ser desencadeada
a 13 de Março e, por minha ordem, ficou sem efeito. Depois, foi
recuperada para o dia 16 de Março, quando é dada a notícia
de que o Spínola foi exonerado. Nessas minhas deambulações,
como dizia, ainda fui a Mafra, cheguei lá às 3 horas da manhã,
depois, nada conseguido, regressei a Lisboa e desloquei-me a casa do Monge
ele morava em Miraflores, em Algés para tentar saber o que é
que se estava a passar, porque eu não tinha conseguido cumprir as
missões que me foram cometidas. Quando cheguei a casa do Monge,
para aí a um 100 metros à minha frente, parou uma viatura
da qual saem cinco homens todos de gabardina e chapéu. Parti do
princípio que eram da PIDE, e era de facto uma brigada chefiada
pelo inspector Oscar Cardoso. Foram a casa do Monge, de maneira que eu
nem parei. Se tivesse chegado um minuto antes deles e estivesse em caso
do Monge quando eles batessem à porta, às cinco e meia da
manhã, não me safava. E se tivesse chegado um minuto depois,
batia à porta, já eles lá estavam e prendiam-me também.
EXP.- Porque é que acha que
a PIDE, nos quarenta dias que se seguem, até ao 25 de Abril, não
consegue desmantelar o Movimento ?
O.S.C.- Primeiro, desde os tempos
da guerra do Ultramar que havia sempre uma comunhão de actividades
entre a PIDE e as Forças Armadas, a nível de escalões
menos intermédios mas sobretudo de escalões mais altos...
EXP.- Acha que havia alguma inibição
da PIDE em actuar ?
O.S.C..- Sim, porque existiam de
facto esses contactos. Por outro lado, a PIDE consideraria que uma questão
como essa, que envolvia um grupo de oficiais já muito alargado dentro
da instituição militar, requeria uma ordem directa do Governo.
E Marcello Caetano terá deixado aquilo avançar demasiadamente,
à espera de conseguir conciliar e resolver a situação.
Com o movimento já em marcha, puxa para vice-chefe do Estado-maior
o Spínola, que era, para o Marcello, o «ponta-de-lança»,
a figura importante que havia que controlar. Com a publicação
do livro Portugal e o Futuro, Marcello percebe que alguma coisa pode acontecer.
Pressionado pela extrema-direita, tem de exonerar Spínola e com
a vitória alcançada no 16 de Março, fica tranquilizado:
«O Spínola agora foi isolado, perdemos os spinolistas, a situação
acalma», como ele diz no comunicado em que elogia a vitória
sobre o 16 de Março.
EXP.- E acredita que a PIDE não
tinha informação que o movimento era mais vasto do que esse
número de spinolistas ?
O.S.C.- A partir do 16 de Março,
com a prisão de cerca de 200 soldados, cabos e sargentos do Regimento
de Infantaria das Caldas da Rainha, além de 30 oficiais, a PIDE
poderia começar a estabelecer um quadro de dirigentes do MFA. Tive
receio de que isso acontecesse, e pensei que a única saída
para nós não era como muitos camaradas advogavam ficarmos
quietos, não fazermos mais nada até a situação
ficar tranquila. Tive a ideia precisamente contrária: a única
saída neste momento é a fuga em frente, e tomarmos a ofensiva
e irmos declaradamente para a acção militar. Porque, se não,
a PIDE começa a trabalhar e arruma o MFA. Foi essa a teoria que
prevaleceu e que, felizmente, foi levada por diante. A minha perspectiva
foi sempre a de fazer a acção militar antes do 1º de
Maio. Porque depois de ter visto os «grafitti» que havia por
Lisboa - «O 1º de Maio é Vermelho», etc. pensei:
«Bem, a PIDE está dedicada neste momento a destruir aquilo
que houver de PC e MRPP e vai concentrar-se exclusivamente nisso».
Não vamos trocar mais documentos nenhuns, não vai ser elaborada
mais nenhuma circular, não há mais nenhuma reunião,
acabou tudo, e vocês agora limitam-se de ficar à espera de
receber a missão da acção militar. A última
reunião em que tudo se decidiu foi em 24 de Março de 74,
muito perto da minha casa, na Quinta da Figueirinha. Eu expliquei o que
tinha sido o 16 de Março, os erros cometidos, fiz o meu «mea
culpa», mas também assumi a responsabilidade. Garanti
ao Marques Júnior, que me perguntou quando é que eu previa
lançar a acção militar, que na semana de 22 a 29 de
Abril a acção seria desencadeada e que eu me encarregaria
de gizar um plano de operações, de preparar a acção
e comandá-la a partir de um posto de comando que ia instalar num
sítio que depois mais tarde se veria.
Já tínhamos nas mãos
as bases programáticas que, no dia 22 de Março à noite,
em casa do Vítor Alves, o Melo Antunes nos tinha lido ele tinha
sido encarregado por mim e pelo Vítor Alves de elaborar esse programa
político do MFA. e o Vítor Alves assumiu a responsabilidade
de constituir um grupo político para levar por diante, em discussão
com os generais Spínola e Costa Gomes, a feitura final
de um programa político que sustentasse politicamente a acção
militar se ela fosse vitoriosa.
EXP.- Está de acordo com
aquela ideia que durante muito tempo andou a circular por aí de
que o 16 de Março tinha sido uma jogada de antecipação
dos spinolistas ?
O.S.C.- É falso. Não
tem nenhuma razão de ser. E eu não tenho dúvida nenhuma
porque acompanhei o 16 de Março, estive na génese do 16 de
Março, participei nele e acompanhei o que se passou.
EXP.- Mas é uma reacção
precipitada e irreflectida à exoneração de Spínola
e Costa Gomes.
O.S.C.- Absolutamente.
EXP.- Numa entrevista recente,
Kaúlza de Arriaga dizia que tinha preparado três ou quatro
planos de contra-ataque para derrotar o 25 de Abril.- Que comentário
lhe merece isso ?
O.S.C.- Não tenho qualquer
comentário a fazer, porque isso cai absolutamente no ridículo.
É uma bravata que não tem consistência nenhuma. Porque
nem com os pára-quedistas, por exemplo, ele podia contar. Em 17,
18, 19 e 20 de Abril eu fiz a entrega das missões todas às
unidades do MFA. No 25 de Abril entrou o Exército e entraram oficiais
da Força Aérea. Não contava com unidades da Marinha
nem da Força Aérea, mas interessava-me obter a neutralidade
dos fuzileiros e dos pára-quedistas. Nesse sentido, eu tinha promovido,
através do Rafael Durão, coronel pára-quedista, um
contacto com o comandante dos pára-quedistas, que era o coronel
Fausto Marques. Creio que no dia 21, Domingo, encontrei-me com eles e expliquei
ao Fausto Marques qual era a minha ideia de manobra e o que iria fazer.
Respondeu-me que os pára-quedistas não entrariam nessa acção
porque eu não tinha feito uma preparação aprofundada
das nossas forças e das forças do inimigo ... e, portanto,
era preciso trabalhar mais o plano das operações, de tal
forma a coisa resultasse 100 por cento vitoriosa. E, quando eu tivesse
a coisa bem estruturada, que contactasse outra vez com ele. Eu então
disse-lhe: «Suponha que havia uma necessidade imperiosa de lançar
a operação como aqui está. O que é que o meu
coronel acharia: os pára-quedistas actuariam contra o movimento
?» «Não senhor. Se isso acontecesse, neutralidade
total dos pára-quedistas. Eu não vou empregar a minha força
contra o MFA». Era isso que me interessava ouvir. À
despedida o Rafael Durão diz-me: «Pronto, Otelo, ouviste o
que disse o Fausto Marques, prepara essa coisa melhor e de daqui a um mês
contacta-me outra vez». E eu respondo-lhe: «Não vou
contactá-lo, porque a acção vai ser desencadeada daqui
a três dias. A mim só me interessava saber uma coisa
do Fausto Marques: que os pára-quedistas não irão
contra nós». Os pára-quedistas não entraram,
de facto, mas na tarde do dia 25 apareceu-me um helicóptero, no
posto de comando da Pontinha, com três tenentes-coronéis pára-quedistas
extremamente ofendidos porque os pára-quedistas não iam entrar
na acção. E eu disse-lhes: «Estive com o vosso comandante
há três dias, expliquei-lhe isto tudo e, se ele não
vos quis aqui, a culpa foi dele». Dá-se o 25 de Abril, o coronel
Fausto Marques foi saneado, mas beneficiará mais tarde da reconstituição
de carreiras promovidas pelo bloco central PS-PSD, será reintegrado
e chegará a general ...
EXP.- Voltando ao dia 26 de Abril.
Que comentário lhe fez a sua mulher quando chegou a casa ? Ela estava
ao corrente de tudo ?
O.S.C.- Não estava. Bem,
eu fiz imensas reuniões na minha casa. A minha mulher sabia que
eu estava integrado num movimento de oficiais, clandestino, que já
vinha da Guiné, mas não sabia exactamente quais eram as funções
que desempenhava no movimento. E só lhe revelei isso quando me despedi
dela, no dia 23 à noite. Por razões de segurança,
decidi ir dormir à Pontinha logo na noite de 23 e não voltar
a casa, porque podia haver uma denúncia e ser apanhado em casa pela
PIDE. Só nessa altura é que lhe disse: «Tens acompanhado
estas reuniões que temos feito. Vamos fazer uma revolução
e eu tenho um papel importante aí a desempenhar. Vou comandar esta
coisa. Vou daqui para o comando clandestino e não sei o que é
que isto vai dar. Pode dar uma vitória, mas também pode dar
para o torto. Se, por acaso, formos derrotados, eu despeço-me de
ti, porque nunca mais, de certeza, nos veremos. Tens de te prepara psicologicamente
para isso. Cuida dos filhos. Se isto der vitória, depois de amanhã
estou em casa e vamos almoçar». Nesse momento é que
ela assumiu a dimensão do meu envolvimento. Ficou num estado de
tensão muito grande e eu saí. Mas tinha-me esquecido da pistola
e só dei por isso quando estava no carro. Voltei a casa para buscar
a pistola, ela já não estava à espera que eu entrasse
e encontrei-a desabalada em lágrimas, sentada na cama a chorar.
Depois, acompanhou o 25 de Abril pela rádio não tínhamos
sequer televisão nem telefone (eu nunca tinha querido telefone porque
a certa altura podia haver uma captação ... ia sempre telefonar
à mercearia). Mas, pela rádio, ela tinha acompanhado a vitória
do Movimento e por isso estava tranquilizada.
EXP.- E quando chegou a casa ?
O.S.C.- Quando cheguei a casa, com
a barba por fazer, já não dormia há três noites,
foi uma alegria bestial, ela agarrou-se a mim e eu disse: «Prometi
que estava cá para o almoço do dia 26 e cá estou».
EXP.- Acha que ela tinha noção
da viragem que se tinha dado em Portugal ?
O.S.C- Não tinha. E eu também
não. Hoje considero que o 25 de Abril foi o acontecimento mais notável
para o País pelo menos da segunda metade deste século, dada
a transformação que permitiu que Portugal sofresse. E digo
pelo menos da segunda metade para não ser imodesto e porque em 1910
houve a queda da monarquia, que foi outro ponto de viragem importante.
EXP.- Nos meses a seguir ao 25 de
Abril começa a ter contactos com figuras políticas. Como
foram os seus primeiros contacto com Mário Soares ou com Álvaro
Cunhal ?
O.S.C.- Acabei por não ter
muitos contactos com líderes políticos, porque estava mais
ligado à questão militar. Quem assumiu de facto essas
funções de contacto com as figuras políticas, em representação
do MFA, foi mais a Comissão Coordenadora, com o Melo Antunes, regressado
dos Açores, o Vítor Alves, o Vasco Lourenço, o Charais,
o Vítor Crespo. Mais tarde, durante o PREC, é que venho a
ter contacto com essa gente. Fui solicitado para
muitos encontros com figuras políticas ... Curiosamente, o meu afastamento
da vida político-partidária da clandestinidade era tão
grande que eu nunca tinha ouvido falar no Álvaro Cunhal. Do Mário
Soares tinha ouvido falar até por causa da CEUD em 1969, e
o primeiro contacto que tenho com ele é em Junho, princípio
de Julho de 74, quando sou chamada a Belém pelo Spínola,
já Presidente da República. Pediu-me para acompanhar em delegação
Mário Soares, então Ministro dos Negócios Estrangeiros,
às conversações preliminares com a Frelimo. Chamou-me
a Belém às 9H da noite já da véspera da partida,
para me dar especificamente a missão, como representante do MFA,
de vigiar Mário Soares, que levava ordens de Spínola para
obter a todo o custo o cessar-fogo em Lusaca.
EXP.- Vigiar como ?
O.S.C.- Spínola queria que
a Frelimo assinasse o cessar-fogo connosco para, a partir daí, estabelecer
mecanismos de conversação e ver como seria possível
encaminhar o país para uma autodeterminação ou para
eleições. Ele tinha ainda a perspectiva de que se deviam
criar partidos em Moçambique, Angola, Guiné, etc., tornando
possível uma eleição parlamentarista. E eu levei essa
missão de vigiar Mário Soares, para saber se ele se batia
por trazer o cessar-fogo a todo o custo nas conversações
preliminares com a Frelimo.
EXP.- E o contacto entre ambos dá-se
na viagem.
O.S.C.- Mário Soares não
me conhecia, eu também não o conhecia pessoalmente, e ele
tinha encarregado o Vítor Cunha Rego de obter informações
a meu respeito. O Cunha Rego comunicou-lhe que eu era um elemento
altamente cotado no MFA e que, se calhar tinha sido seleccionado para uma
acção de vigilância. O Mário Soares terá
ficado um bocado agastado com essa desconfiança manifestada por
Spínola. Mas como o MFA fazia parte do poder, ele aceitou perfeitamente.
Para ir a Lusaca fizemos o percurso Londres-Nairobi-Lusaca, não
havia avião directo. Durante a viagem, fui sentado ao lado de Mário
Soares e ele foi fazendo perguntas, foi tirando nabos da púcara.
«Então, em que unidade entrou no 25 de Abril ? O que é
que fez ? E eu vi-me obrigado a explicar. Disse o que é que tinha
feito, e ele ficou banzadíssimo quando percebeu que era o comandante
do 25 de Abril que tinha sido enviado nessa missão com ele: «O
quê ? Não me diga ! Então foi o senhor que fez isso
tudo ?»
EXP.- Com que impressão ficou
de Mário Soares ?
O.S.C.- Gostei muito dele. Achei-o
um homem extremamente bem intencionado e altamente capacitado para o desempenho
daquelas funções. E eu, que estava imbuído ainda daquelas
perspectivas de uma certa rigidez formalista dos ministros, tive um espanto
enorme no aeroporto de Nairobi, quando lá estávamos à
espera da mudança de avião para Lusaca. Lembro-me de nos
termos cruzado no aeroporto com o Francisco Balsemão e de, às
tantas, ter ido dar uma volta, a ver as lojas e tal. Quando regressei ao
local onde o tinha deixado, vejo, num banco de pedra sem encosto, sem nada,
o Mário Soares, que tinha tirado os sapatos, tinha tirado o casaco,
tinha enrolado o casaco em almofada e estava a bater uma soneca valente.
E eu pensei: «Então, mas isto é que é um ministro
dos Negócios Estrangeiros ?» Fiquei, a partir daí,
com a noção de que Mário Soares é um homem
que se sente perfeitamente à vontade em qualquer situação.
Até hoje, tenho uma relação cordial e muito afectiva
com ele, apesar de poder reprovar muita das coisas que ele fez.
EXP. - Como decorreram as negociações
em Lusaca?
0.S.C. - Eu cumpri rigorosamente
a missão de vigilância a Mário Soares. E o Mário
Soares cumpriu exactamente a missão de que tinha sido incumbido
pelo general Spínola. Nessas conversações, a nossa
delegação era rnixuruca - 0 ministro dos Negócios
Estrangeiros, eu, como elemento do MFA, e um elemento do gabinete do Mário
Soares, que era o Manuel Sá Machado, primo direito do Vítor
Sá Machado, enquanto a delegação da Frelimo tinha
nove elementos, todos eles futuros ministros, e era chefiada pelo próprio
Samora Machel. Era uma delegação muito forte e ia ali preparada
para conversações sérias. Mário Soares bateu-se
demoradamente pela obtenção do cessar-fogo. 0 problema é
que os argumentos da Frelimo eram extremamente sólidos, queriam
a transferência do poder, e Samora Machel apontou claramente a fragilidade
enorme das Forças Armadas portuguesas no terreno: <Vocês
sabem que, neste momento, estamos a ocupar os vossos quartéis e
que o vosso Exército já não está disposto a
continuar o combate.» Eu, logo à partida. coloquei-me deliberadamente
ao lado da Frelimo, porque aquela perspectiva era exactamente a do MFA.
EXP. - Afinal, Mário Soares
é que tinha de o vigiar a si ...
0.S.C. - Eu não levava missão
nenhuma do Presidente, a não ser vigiar o Mário Soares. E
tive oportunidade de dizer: «Aquilo que eu aqui vou dizer é
em representação do MFA e, para mim, o representante do povo
moçambicano em luta pela libertação e pela independência
é a FreIimo.» 0 Mário Soares ficou extremamente incomodado
com esta minha posição. Pediu uma interrupção
das conversações, para eu me deslocar com ele a outra sala,
e disse-me: «Estou aqui numa posição extremamente difícil.
Concordo consigo e com a Frelimo mas, como ministro dos Negócios
Estrangeiros, trago como missão do Presidente da República:
lutar aqui para levar para Lisboa a garantia do cessar-fogo antes de qualquer
outra coisa. Foi isso que o senhor Presidente me disse para fazer.»
Respondi-lhe: «Eu sei isso perfeitamente. E garanto que está
a cumprir a sua missão. Agora, eu é que não tenho
obrigação nenhuma de o fazer. Estou aqui a representar o
MFA, quem está a representar o Presidente é o senhor.»
Então o Mário Soares avisou-me: «0 senhor major tenha
paciência, mas quando chegarmos a Lisboa vai assumir essa posição
perante o Presidente.» Tranquilizei-o: «É evidente que
vou. Fique descansadíssimo que eu vou.» E pronto, a coisa
decorreu assim, está claro que não foi obtido o cessar-fogo.
Entretanto, o MPLA sabia que um elemento do MFA se encontrava na delegação
portuguesa e foi encontrar-se comigo no hotel de Lusaca. Essa delegação
do MPLA era chefiada pelo
Iko Carreira, e eu garanti-Ihes que o
MFA estava, de facto, com 0 MPLA, que era, para nós, o movimento
de libertação fundamental em Angola.
EXP. - Preferiam falar consigo do
que com Soares?
0.S.C. - Sim, sim. E de tal forma
que, quando vim, o Melo Antunes pediu para falar comigo e perguntou-me:
«Então, como é que foi aquilo? Como é que correu
Iá a confusão?». Eu estive a dizer-Ihe corno é
que tinha corrido, o Mário Soares e tal, o que eu tinha dito...
EXP. - E eles concordaram?
0.S.C. - 0 Melo Antunes disse-me:
«Fizeste muito bem. OK. Foi óptimo dizeres-me isso, porque
agora vai ser a nossa base de tratamento quando formos para as conversações,
com vista, já, a definir a data da independência.»
EXP. - Também lhe disse que
se tinha antecipado aos acordos do Alvor e que já tinha dado ao
MPLA toda a legitimidade revolucionária?
0.S.C. também lhe falei
nisso, sim. E ele concordou perfeitamente. Era a nossa filosofia, do MFA.
Sem dúvida nenhuma.
EXP. - Como é que o Spínola
recebeu o relato dessa missão?
0.S.C. Quando chegámos,
fomos do aeroporto directamente para Belém e o Mário Soares,
quando chegámos a Belém, disse: «Pronto senhor general,
cá estamos e aqui o senhor major vai-lhe explicar o, que se passou».
E eu disse: «Ó meu general devo dizer-Ihe que, de facto, o
senhor ministro dos Negócios Estrangeiros cumpriu rigorosamente
as suas determinações. Ele lutou denodadamente pelo cessar-fogo.
Não trazemos para já o cessar-fogo, mas as conversações
foram boas.» E depois contei-lhe a minha intervenção.
O Spínola nem queria acreditar.«0 que"?!» E eu disse:
Ó meu general, tomei esta posição porque esta é
a posição não só minha, nas do MFA.»
EXP. - Mas o MFA tinha discutido
e decidido isso?
0.S.C. - Não tinha discutido.
Mas, a partir do plenário de Cascais, em 5 de Março de 74
- uns meses antes - através do documento elaborado pelo grupo de
Melo Antunes, o tal documento «0 Movimento das Forças Armadas
e a Nação» assinada por 111 dos 197 presentes no plenário,
não tínhamos dúvidas nenhumas de que a filosofia do
movimento era essa. A do reconhecimento total do direito à autodeterminação,
dos povos das colónias, com todas as consequências da independência.
EXP. - Mas não estava estipulado
que a entrega do poder seria feita a um só movimento...
0.S.C. - Não, não.
Estava definido já embora não estivesse explícito
no documento - que os movimentos representativos nas colónias eram
a Frelimo em Moçambique, o PAIGC na Guiné e o MPLA em Angola.
O Spínola, de facto, ficou muito mal disposto. E foi nessa altura
que ele ameaçou logo que isto não ia ficar assim e que ele
iria solicitar ao Nixon o envio de forças norte-americanas, dada
a impossibilidade de manter as nossas forças em continuidade de
acção. Era urna utopia de desespero! Enviar forças
americanas, de repente, para Moçambique! Onde é que o Nixon
ia participar numa coisa dessas? Era impossível!
EXP. - É por essa altura
que se dá a crise do Governo Palma Carlos, que tem na génese
o facto de Spínola se sentir ultrapassado pelo MFA e
querer alargar os seus poderes?
0.S.C. - Exactamente.
EXP. - Spínola chegou a apresentar
alguma vez a demissão durante essa crise?
0.S.C.- Não, o Spínola
não aparece, mas o próprio Sá Carneiro vai defender
o reforço dos poderes presidenciais pelo Spínola, numa reunião
na Manutenção Militar. 0 Spínola está lá
pouco tempo e, depois, abandona a reunião. Mas fica o Sá
Carneiro a tentar levar por diante essa ideia. Julgo que o Spínola
já não está presente quando há urna intervenção
muito dura do Vasco Gonçalves e, depois, outra do Vasco Lourenço
a oporem-se a essa ideia. Com a demissão de Palma Carlos,
processa-se uma crise em que há necessidade de escolha de um novo
primeiro-ministro. E passa-se um episódio engraçado. Nós,
na Cova da Moura, estamos em reunião. 0 Almeida Bruno, o Hugo dos
Santos, o Melo Antunes, o Vítor Alves, eu, o Vasco Lourenço:
«Temos que propor nós um nome para primeiro-ministro.»
Fala-se em vários e a nossa falta de habilidade para a escolha do
primeiro-ministro tinha sido notável, porque, mesmo antes do 25
de Abril, os quatro nomes que propusemos à Junta de Salvação
Nacional para primeiro-ministro eram todos nomes que, hoje, nos colocam
num certo ridículo. Tínhamos um desconhecimento total da
vida política do País, das suas figuras....
EXP. - Quais foram esses quatro
nomes?
O.S.C. - Tínhamos proposto
o Raul Rego, que era militante do PS, portanto era uma estupidez estar
a propor o Raul Rego quando não propúnhamos o secretário-geral
do partido. 0 Mário Soares diz que se riu a bandeiras despregadas
quando soube disso. 0 Raul Rego! Tínhamos proposto o Miller Guerra,
que era da ala liberal e uma figura prestigiada, era médico. Tínhamos
proposto o Francisco Pereira de Moura, que tinha tudo menos perfil de primeiro
ministro, e havia uma quarta proposta que já não me lembro
bem qual era. Bom, nessa altura estamos a discutir e são avançadas
várias propostas, entre as quais a Dra. Isabel Magalhães
Colaço. Até que eu disse: «Porque é que estamos
à procura de elementos civis, quando temos elementos militares talvez
capazes poder desempenhar a missão?» E sou eu que proponho
o nome do Vasco Gonçalves. Portanto, sou responsável por
Vasco Gonçalves e, mais tarde, o Pinheiro de Azevedo serem primeiros-ministros.
0 Vasco Gonçalves também estava presente e perguntamos--lhe:
«0 que é que você acha de ser primeiro-ministro?»
E ele: «Eu posso ser, não tenho grande dificuldade em poder
exercer o cargo. Com a vossa ajuda, com a vossa colaboração...»
E a malta: «Sim, senhor. É boa hipótese. Então,
Otelo, encarregas-te de ir com o nosso coronel a Belém e dizes ao
general Spínola que o nosso candidato a primeiro-ministro é
o Vasco Gonçalves.» Saímos os dois dali, eu agarrei
no meu carro, fomos até Belém, e, enquanto o Spínola
estava em reunião, pedimos para falar com o general Costa Gomes.
0 general veio ter connosco, fomos para uma salinha pequena e eu disse-lhe:
«Ó meu general, venho aqui em representação
da Comissão Coordenadora do MFA para lhe dizer que a nossa escolha
para primeiro-ministro é o nosso coronel Vasco Gonçalves.»
Responde o general Costa Gomes: «Ah, está bem, sim senhor.
Mas não há problema nenhum, escusam de se preocupar com isso
porque o primeiro-ministro já está escolhido, o nosso general
Spínola está neste momento a falar com ele, tenente-coronel
Firmino Miguel, é ele que vai ser primeiro-ministro.» Eu digo-«Bem,
nós aceitamos o Firmino Miguel, com certeza. Mas se, por acaso,
falhar o Firmino Miguel, o nosso coronel Vasco Gonçalves avança.
«Sim, senhor. Mas não é preciso, já está
feito», diz o Costa Gomes.
Ficámos ali a falar encostados
a uma janela quando vimos sair o Firmino Miguel do gabinete do Spínola
e vem alguém ter connosco: «O Firmino Miguel não aceitou
ser primeiro-ministro sem ter o apoio do MFA.» Pouco depois, o António
Ramos, vem ter com o Vasco Gonçalves e diz-Ihe: «Meu coronel,
o nosso general chama-o.» Ele vai lá dentro, fica uns minutos,
sai, vem ter comigo e diz-me: «Pronto, o nosso general nomeou-me
primeiro-ministro.» O que se passou é que, depois do
falhanço do Firmino Miguel, o Costa
Gomes tinha ido dizer ao Spínola qual era a escolha da Comissão
Coordenadora. E o Spínola, em desespero, precisava de ter um primeiro-ministro
e nomeou o Vasco Gonçalves
EXP. - Nunca lhe pareceu que Vasco
Gonçalves era um elemento do MFA extremamente ligado à estratégia
do PCP?
O.S.C. - Sabia isso e fui-o verificando
ao longo de todo processo, uma ligação estreita, de facto,
entre o Vasco Gonçalves e o PCP. E daí o meu confronto permanente
com o Vasco Gonçalves.
Ele deu sempre razão aos sindicatos
e à CGTP e pretendia até a eliminação das organizações
populares de base. Há uma manifestação qualquer que
se realiza à revelia dos sindicatos e basta a CGTP considerar que
aquela é uma manifestação selvagem para que o Vasco
Gonçalves me telefone a pedir para eu impedir que a manifestação
se realize. Discuto com ele «Mas porquê? Então isto
é uma manifestação de trabalhadores, está pedida,
está autorizada...» Mas é uma manifestação
selvagem... Há grandes conflitos, sobretudo no campo laboral e no
campo das manifestações de rua, entre mim e o Vasco Gonçalves.
E não tenho dúvida nenhuma de que ele era, de facto, um elemento
do PCP.
EXP. - A nomeação
daquele como primeiro-ministro veio, também, agudizar a crise que
já existia entre o Presidente e o MFA, pois Spínola nunca
se deu bem com Vasco Gonçalves...
O.S.C. - Primeiro, o Spínola
ficou com um certo alívio, porque a responsabilidade era repartida.
Mas a curto prazo, tudo se agudizou ainda mais. Isto passa-se em meado
de Julho e, na mesma altura os oficiais do MFA espalhados por todo o país
impõem a minha presença para comandar o Copcon, o Comando
Operacional do Continente que é um órgão criado para
defesa da revolução. Então, Spínola vem ao
meu gabinete e, apenas com a presença do major Monge, começa
por me dizer que vai promover-me general de quatro estrelas para eu assumir
a chefia do Estado-Maior General das Forças Armadas. Havia aqui
uma jogada notória do Spínola. Ele vê que cometeu um
erro grave ao querer para ele a Presidência, ficando as Forças
Armadas sob o comando do Costa Gomes. E pretende afastar o Costa Gomes
com o argumento de que os militares do MFA só me aceitam a mim corno
comandante. Eu sou um jovem que ele conheceu na Guiné, que está
convencido de poder dominar, um jovem de trinta e sete anos que fica ali
debaixo da mão dele. E eu digo-lhe: «Ó meu general,
é evidente que não posso aceitar isso. Por várias
razões: primeiro, porque não tenho a perspectiva global do
que são as Forças Armadas, em termos técnicos, para
poder comandá-las. Em segundo, e mais importante, é que há
um compromisso entre nós, MFA, ao sairmos vitoriosos desta contenda,
de não aceitarmos quaisquer privilégios, honrarias, distinções,
que venham de cima para baixo. Portanto, não posso aceitar a promoção
que o senhor me quer dar.» Mas ele insiste com uma data de argumentos:
a hierarquia estava toda de pernas para o ar, tinha que se tentar repor
a hierarquia nas Forças Armadas, e tal. Ao fim de muita discussão,
o Monge propõe que eu fique sob o comando do general Costa Gomes,
como comandante-adjunto do Copcon, assumindo o general Costa Gomes o comando
do Copcon, que é mais uma divisão do EMGFA. E que eu seja
graduado em brigadeiro para comandar o Copcon e a Região Militar
de Lisboa. 0 Spínola aceita esta proposta e eu também concordo
com ela.
EXP. - Que ideia é que tinha
do que devia ser o Copcon?
O.S.C. - 0 Copcon é criado
com urna perspectiva de ser um órgão militar executivo, de
decisão rápida, que permite actuar com as unidades todas
do Exército espalhadas pelo País e com o reforço de
unidades de torças especiais da Marinha - fuzileiros - e da Força
Aérea - pára-quedistas - no sentido de impedir as actividades
contra-revolucionárias.
EXP. - Mas pôs o Copcon a
fazer ocupações de casas, de terras...
O.S.C. - Sim, isso aí é
da minha responsabilidade. Mas assumi essa actuação devido
a uma total demissão de responsabilidades ao longo do PREC.
Começo a receber, no Copcon, delegações
de trabalhadores que tem um problema laboral qualquer: o administrador,
o dono, abandonou a fábrica, levou tudo o que podia para o Brasil
e, agora, o que é que vai ser da fabrica?. Os trabalhadores tornam
conta da fábrica, não tomam?. Os trabalhadores dirigiram-se
ao Ministério do Trabalho e lá' disseram-lhes que não
sabiam como é que se havia de resolver aquilo. Eles, então,
aparecem no Copcon e começam a ser canalizados para o Copcon todos
os problemas existentes no País. Recebo de1egações
de trabalhadores, de camponeses do Alentejo, etc. E penso: «Bem,
se aqueles que estão responsabilizados por estes problemas tem receio
de tornar uma posição e remetem para mim, então tenho
eu que tomar uma resolução qualquer, mesmo que seja má.»
E começo a nomear oficiais meus para resolver problemas laborais,
de ocupações de casas, de terras... E aquilo começa
a ultrapassar, de facto, a sua missão.
EXP. - As ocupações
de terras também resultaram desse seu impulso natural?
O.S.C. - 0 meu impulso! Por considerar
que assim é que estaria bem. Começou a falar--se, em determinada
altura, que seria importante fazer-se uma reforma agrária, que daria
a posse da terra aos trabalhadores. Perante este anúncio, os grandes
agrários resolveram tomar precauções. E, em princípios
de 75, comecei a receber delegações de camponeses,
trabalhadores rurais alentejanos que vinham queixar-se ao Copcon: «Os
agrários estão a levar o gado, as máquinas agrícolas,
tudo para Espanha e a vender, estão a abandonar as terras e aquilo
está a tornar-se mato e, depois, nós não temos possibilidade
de as trabalhar.» Num dos meus impulsos, disse: «Então,
porque é que vocês não ocupam as terras ?» «Mas
ocupar como? Depois vem a GNR, com as G3, começa a dar uns tiros
e nós temos de fugir e abandonar aquilo.» Eu disse: Vocês
não têm caçadeiras ? «Mas os gajos têm
as G3, têm as automáticas... e nós com caçadeiras...»
«Então, se o problema é a GNR, vamos combinar o seguinte:
todas a manhãs eu tenho aqui um reunião com um representante
da GNR, um representante da Guarda Fiscal e outro da Polícia. E
vou dizer ao capitão da GNR que aqui aparecer amanhã que,
a partir deste momento, a GNR não intervém mais no Alentejo
a desocupar as terras que vocês vão ocupar. Vocês, a
partir de hoje, agarram nas vossas caçadeiras, vão para a
terras e ocupam-nas. Se os agrários aparecerem, vocês têm
as caçadeiras na mão e correm com o agrário. Pronto,
acabou.»
Continua
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