Não foi pacífica a decisão.
O general Spínola, que abrira o dossier da descolonização
prometendo decidi-la «democraticamente» e jamais
negociá-la com «facções de representatividade
equívoca», abandonou o barco após os acontecimentos
de 28 de Setembro de 1974, o primeiro grande confronto da longa crise da
revolução. Chegara ao fim o protagonismo do general colocado
no poder pelos capitães:
-- Assumi a Presidência da Junta
de Salvação Nacional e da República - diz António
de Spínola - com a intenção de transmitir à
Nação os ideais democráticos que o Programa do I Governo
Provisório traduziu fielmente. As contradições entre
os defensores de uma linha democrática e os que pretendiam colocar
Portugal na órbita comunista agravaram-se dia a dia. A aceleração
do processo de descolonização favorecia a entrega dos territórios
africanos ao mundo comunista. Assim se explicam os ultimatos, as traições,
a cobardia de tantos que traíram a Minha. confiança por obediência
a ideologias antagónicas do interesse nacional. E essa cegueira
atingiu tal dimensão que não se importaram de sacrificar
centenas de milhares de portugueses, expulsos das terras que eram suas
e às quais deram o melhor do seu esforço e saber ao longo
de algumas gerações.
Abandonei a Presidência da República
amargurado porque senti não ser possível conjugar os ideais
da democracia com a constituição da Comunidade Lusíada
com que sonhara. Ao assistir às tragédias que enlutam Angola,
Moçambique e Timor sinto que, infelizmente, eu tinha razão.
Pergunta - Disse que a democracia
era inconciliável com o seu projecto de uma Comunidade Lusíada.
Foi isso que lhe ditou a experiência no poder?
A de S. - Sem dúvida.
Porque os próprios militares, camaradas que haviam feito o 25 de
Abril comigo, se encontravam totalmente divididos. Havia uma minoria que
comungava do meu sonho e havia alguns que traíram o Programa por
mim anunciado à Nação em 25 de Abril, e fizeram, totalmente,
o jogo da entrega dos territórios ultramarinos à União
Soviética.
Pergunta - E sem democracia esse
projecto era possível?
A. de S. - Talvez. Mas com grandes
perigos porque viria à luz uma política de força,
de natureza, uma política muito semelhante à que estivera
no poder e podia trazer para o país a continuação
de um regime ditatorial.
Pergunta - Passados todos estes
anos, e se fosse possível voltar atrás, fazia tudo o que
fez? Renunciava à Presidência da República?
A de S. - Sim. Parece estranho,
mas é verdade. Porque senti que não tinha forças militares
que me acompanhassem no meu sonho. Voltava a renunciar à Presidência
da República.
Pergunta - Voltava a convidar
o PCP para o governo?
A. de S. - Tenho a dizer-lhe
que a presença do PC no governo, no preenchimento de uma pasta um
pouco simbólica, nunca acarretou qualquer inconveniente imediato
à minha. acção de governo, nem tão pouco do
primeiro ministro Palma Carlos.
Pergunta - Mas o senhor considera
que foi a política do Partido Comunista que veio a ser aplicada
na descolonização?
A. de S. - Claro. Mas, como
sabe, e isto é uma realidade que não é possível
encobrir, de todas aquelas forças que gravitavam à roda do
25 de Abril o único partido que tinha um passado, experiência
e formação política era o PC. De maneira que no governo
era ele o único que tinha experiência política suficiente
para levar a sua missão com êxito. Êxito que está
na origem do ano de 1975.
Pergunta - Na sua acção
sentiu mais os efeitos dos confrontos e divisões na sociedade civil
ou nas Forças Armadas?
A. de S. - Mais nas Forças
Armadas. A população civil reagiu, e haja em vista a forma
como reagiu aos inúmeros contactos que tive com as populações
a seguir ao 25 de Abril. Nessa altura, ainda sentia vibrar a população
civil em toda a sua pujança. Essa população veio a
ser trabalhada, depois, pelo PC.
Pergunta - E esse trabalho era
contra si?
A. de S. - Esse trabalho era
dirigido, única e simplesmente com o fim de entregar o país,
sobretudo os nossos territórios ultramarinos, ao domínio
comunista. Talvez estivesse na origem disso tudo a descolonização.
Pergunta - Atribui a situação
que se vive em Angola e Moçambique (entrevista em 1993) à
descolonização?
A. de S. - Sem dúvida.
Nós não descolonizámos. Nós entregámos
os nossos territórios ultramarinos.
Pergunta - Outros países
fizeram outras descolonizações e a situação
é igualmente de tragédia…
A. de S. - Sim
Pergunta - Foi a descolonização
em geral que provocou tal situação?
A. de S. - Não. E aí
tenho a dizer-lhe que considero, porque vivi intensamente a guerra em Angola
e percorri Angola toda, conheço Angola como os meus dedos, e não
há dúvida nenhuma que os portugueses têm qualidades
de captação na vontade dos africanos que os outros não
tinham.
Pergunta - Ainda conserva a amargura
com que confessa que deixou a Presidência da República?
A. de S. - Para mim considero
um assunto arrumado, o que não quer dizer que não guarde
uma certa amargura de não ter atingido os meus objectivos em pleno.
Pergunta - Ficou tudo muito longe
dos seus objectivos?
A. de S. - Muito longe. Com
os meus objectivos teríamos evitado o Verão de 1975. Mas
aí contribuíram mil e uma causas.
Pergunta - Ficou marcado por
inimizades e ressentimentos pessoais?
A. de S. - Isso, sem dúvida
nenhuma. Não posso ter deixado de ficar, porque cometeram-se traições
autênticas e as traições não se perdoam.
Pergunta - Não guarda,
no entanto, ressentimentos em relação a Mário Soares,
um dos protagonistas da descolonização?
A. de S. - Tendo a dizer-lhe
que o Dr. Mário Soares foi o único que, na hora crítica,
teve comigo duas ou três reuniões pessoais, secretas, chamando-me
a atenção para os perigos que estávamos correndo,
porque tudo se encaminhava para as mãos do Partido Comunista.
Pergunta - O senhor escreveu
o “Portugal e o Futuro”. Afinal o futuro não foi que previu e foi
mais determinado pela situação nas Forças Armadas
que pela actuação do povo português?
A. de S. - Sem dúvidas
nenhumas. Em todo o caso, há sempre que prestar uma homenagem ao
povo português, porque foi com o povo português que Portugal
se renovou depois, passou do período comunista dos governos provisórios
aos governos do Dr. Mário Soares.
E tudo se passou com o apoio pleno
da Nação e do povo português. O povo era o mesmo.
Pergunta - E as Forças
Armadas eram as mesmas?
A. de S. - Não eram.
Eram novas Forças Armadas. Foi um novo núcleo das Forças
Armadas que reagiu.
General Spínola, obviamente,
demitiu-se em Setembro de 1974 e veio a reescrever a história no
livro País sem Rumo. O Portugal e o Futuro foi para a prateleira.
Como foram o Programa original do Movimento da Forças Armadas e
o Programa do I Governo Provisório, redigido, a pedido de Spínola
e na parte que dizia respeito à descolonização. pelo
professor Veiga Simão:
- O Programa aprovado por Spínola
e apresentado ao Comité de Descolonização da ONU -
diz Veiga Simão - não foi cumprido e foi sucessivamente sabotado.
Pergunta - Em que se baseava o seu
Programa de Governo para a descolonização?
V. S. - Esse Programa baseava-se naturalmente
no Programa do MFA, que o Marechal Spínola proclamou, onde a problemática
da descolonização seria tratada por forma a que o povo português
pudesse, não só ser devidamente consultado, mas também
de maneira a que a descolonização se fizesse com tempo e
sem traumas para as populações portuguesas que viviam no
Ultramar.
Pergunta - Qual foi a diferença
fundamental entre o Programa e a realidade?
V. S. - O Marechal Spínola,
e eu comungava disso, pretendia que a descolonização se fizesse
de acordo com este princípio: Independência dos povos africanos,
sim; independência com Portugal e não contra Portugal. E a
descolonização foi feita contra Portugal, o que se traduziu
na expulsão de praticamente todos os portugueses que ali viviam.
Essa espoliação é, naturalmente, uma vergonha nacional.
Pergunta - Foi embaixador de
Portugal na ONU logo após o 25 de Abril. Como tratavam as Nações
Unidas os dossiers relativos a Portugal e à descolonização?
V. S. - A ONU foi muito compreensiva,
a abertura nos diferentes comités foi muito grande, os países
ocidentais ajudavam Portugal em todas as diligências. Vou dar-lhe
um exemplo. O problema de “Wiriyamu” estava na agenda das Nações
Unidas e, naturalmente, eu consegui que fosse eliminado da agenda, porque
já não era altura de discutir esse problemas. A abertura
da ONU foi total e o próprio Comité de Descolonização
veio reunir-se a Lisboa, dando assim um exemplo de abertura que Portugal
não soube aproveitar.
Pergunta - Com toda essa abertura
no plano externo, onde é que a situação se complicou?
V. S. - A base de tudo isto
foi a anarquia interna, a falta de poder, de alguma forma uma desorientação
total. Portugal esteve sem rumo durante algum tempo. A responsabilidade
pela tragédia da descolonização, transformada
em abandono e fuga, cabe exclusivamente a Portugal. A descolonização
é, talvez, a maior tragédia nacional depois de Alcácer-Quibir.
Para homens que sonharam a descolonização,
sob qualquer que fosse a modalidade, guiando-se pelos princípios
internacionalmente consagrados e aceites do direito dos povos à
autodeterminação e à independência, os resultados
da descolonização portuguesa são hoje de algum modo
pungentes e frustrantes.
Alfredo Margarido, professor de História
de África em Paris, considera mesmo que não houve descolonização:
- Conviria talvez dizer: não
houve descolonização portuguesa - diz Alfredo Margarido -
Descolonizações processos de negociação, como
fizeram os franceses, os ingleses, os belgas, os espanhóis. Nós
devido aos efeitos de uma ideologia e da teimosia do professor Salazar,
da influência negativa das famosas teses do luso-tropicalismo, postas
a circular em 1954, acabámos por recusar toda e qualquer solução
negociada. O resultado foi que tivemos uma guerra estúpida, de 1961
a 74, treze anos de guerra, treze anos de paragem do País. Porque
a guerra colonial é uma paragem. Mesmo se houve progressos e modificações
internas, elas não foram o que seria de esperar se não tivesse
havido o peso da guerra. E então, os portugueses foram obrigados
a fazer estas contas simples, que acabaram por ser resolvidas pelos militares:
O preço a pagar era superior aos benefícios obtidos pela
guerra. Essa contabilidade significa que os portugueses foram obrigados
a abandonar a guerra. E fizeram esta coisa simples: abandonaram também
as colónias. Não houve descolonização.
Do Livro “DESCOLONIZAÇÃO
PORTUGUESA” - O Regresso das Caravelas, por João P. Guerra |