1.ª Pergunta
- Quanto ao termo da guerra nas colónias, tudo era claro; havia
parece, total unanimidade. Mas em relação à descolonização
haveria a mesma unanimidade? Haveria algum plano operacional que conduzisse
o processo e salvaguardasse os bens e as vidas dos nossos colonos?
Resposta -
O processo de descolonização não é separável
do termo da guerra. Este tinha um preço: a colaboração
dos movimentos emancipalistas no processo. Ou aceitávamos pagá-lo
ou tínhamos de enfrentar as consequências da continuação
da guerra, já sem condições para isso.
Na Guiné, estávamos à
beira do um colapso militar. Isso é hoje comumente reconhecido.
Esse colapso não seria apenas o segundo - depois do desastre da
Índia - mas o primeiro dos que viriam depois.
Após mais do uma década
de guerra em três frentes, havia-se criado uma situação
bem diversa da existente em 1961 , a quando do início das hostilidades
militares. As nossas Forças Armadas estavam física e psiquicamente
exaustas. Alguns quadros iam na terceira comissão consecutiva. Os
meios de que dispunhamos eram em alguns teatros de guerra mais escassos
e menos sofisticados do que os dos nossos opositores. O preço do
petróleo disparava tornando financeiramente insustentável
o esforço de guerra. A comunidade internacional - com raras excepções
semi-ocultas - condenava a situação do nosso esforço
bélico. Grandes potências se haviam colocado ao lado ou por
detrás dos insurrectos, competindo ideológica e militarmente
entre si por intermédio deles. Não se limitaram, ao menos
no que diz respeito ao bloco de Leste - a apetrechá-los com armas
e treino militar. Ensoparam-nos também em doutrinarismo.
Quando se deu o 25 do Abril, havia alinhamentos
e fidelidades. Gratidões também. O bloco do Lesto - mas não
só ele! – estava por detrás da Frelimo em Moçambique,
do PAIGC na Guiné, o do MPLA em Angola. Os Estados Unidos da América
espaldavam a FNLA em Angola. A África do Sul combatia "a latere"
da UNITA e apadrinhava o baptismo da RENAMO. A luta tinha no essencial
deixado de ser entre Portugal e os movimentos do libertação.
Essa só que fosse e seria impossível ganhá-la. A luta
tinha no essencial, passado a ser entre as grandes potências envolvidas.
E esta não estava ao nosso alcance influir minimamente nela.
Foi neste cenário - de que obviamente
se aperceberam - que as nossas Forças Armadas passaram a reclamar
primeiro, e a exigir depois, o rápido regresso a casa. A opinião
pública deu o mote: " nem mais um soldado para o Ultramar". Daí
o embaraço: nem era possível manter no terreno as nossas
forças nem era possível refrescá-las.
Acresce que entre os nossos soldados e
os combatentes insurrectos, se estabeleceu logo após o 25 de Abril
um pacto tácito e recíproco de não hostilidade futura.
Passaram a confraternizar, a beber pelo mesmo copo, a cantar as mesmas
canções libertadoras. Quem era capaz de pô-los, de
novo, a combater?
Nestas condições, impunha-se
negociar a paz. Se não a qualquer preço - que não
foi esse o caso - de qualquer modo a preço não facilmente
recusável. Lograda a paz, a descolonização tornou-se
uma urgência.
Para os que receavam o recomeço
das hostilidades; para os que rezavam pelo regresso dos filhos; para os
que haviam aceitado o risco da própria vida para libertarem a Pátria;
para a Comunidade internacional; para as próprias potências
envolvidas nos teatros de guerra, que ansiavam pelo vazio colonial a fim
de poderem ganhar espaço de manobra.
Resultado: a aceleração
do processo. Desejada por todos. Imposta por muitos. Mas também
o "enterro”, cuidadosamente preparado - Fanon "dixit” - da máquina
administrativa e económica colonial. Mas, deste "funeral", as vítimas
foram também os próprios coveiros.
Em suma: a descolonização
que foi feita foi a possível nas circunstâncias do caso. São
fáceis, agora, os juízos de prognose póstuma. Mas
a realidade impõe-se sempre com mais força do que os voluntarismos
" a retro”.
2.ª Pergunta
- Com a conquista da independência, parece acto descabido e altamente
perturbador a súbita debandada dos nossos colonos desses territórios.
Porquê tão gravoso retorno, tanto para a paz e desenvolvimento
dessas novas nações como para os "retornados" e para Portugal,
confrontado então com inúmeras dificuldades?
Resposta - O abandono
dos territórios pelos colonos portugueses foi, repito, um acto meticulosamente
preparado. -
Esse desiderato parece hoje estúpido,
dadas as consequências funestas que teve para os novos Estados. Mas
teve causas que hoje são claras, e até uma lógica
hoje irrecusável.
À União Soviética,
e aos seus aliados - internos e externos - convinha a criação
do vazio colonial para poderem exercer sem constrangimentos o seu pretenso
direito de ingerência.
Aos novos poderes emergentes seduzia uma
Pátria sem o espartilho, ou em qualquer caso a condicionante do
velho poder colonial. Fanon - repito - oráculo dos Iíderes
dos movimentos, havia doutrinado que a verdadeira libertação
passava pela imposição, aos velhos senhores, das mesmas humilhações
que estes haviam imposto aos antigos servos: a violência injusta,
a posse da mulher branca, o domínio da propriedade. E o exemplo
das colónias que se haviam emancipado antes iam no mesmo sentido.
Ganhar a guerra (na sua nem sempre irrealista convicção)
e não ganhar os privilégios do branco era uma vitória
sem sentido. A continuação da presença branca, e sobretudo
dos direitos ou privilégios que o regime colonial lhes assegurara,
eram inconciliáveis com o triunfalismo e o espírito de “revanche"
posteriores à independência.
Daí o pânico - provocado
ou meramente consequente - da maioria dos colonos. Daí a desertificação
económica e administrativa. Daí a fome. Daí em parte
a continuação em Angola e Moçambique da lula dos movimentos,
agora entre si.
Foi pena. Mas a possibilidade de um entendimento
genuíno e honroso entre as etnias em presença - incluindo
a branca - foi conscientemente sacrificada no dia em que Lisboa preferiu
a bravata militar às soluções políticas.
Quem não reconhecer isto sacrifica
o raciocínio à paixão.
3.ª Pergunta
- Sentia-se, na altura, directa e ou indirectamente, qualquer influência
por parte das forças protagonistas da Guerra Fria, em particular
dos Estados Unidos e da União Soviética?
Resposta -
Sentia-se é pouco. Era óbvio! Essa foi, no fundo, particularmente
no que diz respeito a Angola, mas também a Moçambique, a
dificuldade maior.
Degladiavam-se no tabuleiro daquela ex-colónia
portuguesa, os dois pólos imperialistas de então: a União
Soviética a apoiar o MPLA, os Estados Unidos da América a
apoiar a FNLA. E, como isso não bastasse, a vizinha África
do Sul abastecia a UNITA e não raro lutava a seu lado.
Termos sentado os três movimentos
à mesma mesa nas negociações do Alvor; termos assinado
com eles um acordo em que se previa uma consulta eleitoral livre e democrática;
termos constituído com eles um Governo Provisório; ter esse
governo chegado a funcionar com sofrível normalidade durante alguns
meses, relevaria do milagre se não fosse o caso de, muito provavelmente,
as potências interessadas terem pactuado com tudo isso para se verem
livres de nós.
Pouco depois, era a guerra civil, soprada
de dentro e de fora. Para não sermos apanhados no fogo cruzado,
e já incapazes de participarmos nele, sequer para o determos, fechámos
o dossier e regressámos à nossa Itaca.
Na véspera da data aprazada para
a independência, sem ter sido possível consultar o povo angolano,
o MPLA ocupava a capital, cercado a norte pela FNLA e a Sul pela UNITA.
Julgou-se, não sem razão, que era o fim do MPLA. Mas, perante
a indecisão dos Estados Unidos da América - que então
perfilhavam a famosa teoria da vacina a União Soviética
sentiu-se exortada a jogar forte. Enviou cubanos e roquetes. Colhidas de
surpresa a Norte, as forças da FNLA puseram-se em fuga. Perante
isso e a destruição a sul de uma ponte estratégica,
a África do Sul fez recuar a UNITA. A guerra convencional tinha
chegado ao fim. Ficaria no terreno, até aos dias de hoje, a UNITA
a disputar em guerra de guerrilha o poder do MPLA, entretanto legitimado
por sucessivos actos de reconhecimento diplomático. Que teria acontecido
se as nossas forças armadas e os nossos colonos tivessem permanecido
no teatro de guerra? Considero ainda hoje acertado termos saído
antes.
Tudo isso hoje é transparente. Stocwell,
ex-director da CIA para a área de Angola, em livro que publicou
após a demissão, conta tudo até ao pormenor. Como
esperar de nós o milagre inteiro? Ainda agora, já sem guerra
fria; já sem o muro de Berlim; já com a URSS desfeita e a
Rússia de rastos; já com a África do Sul governada
por maioria africana de esquerda, continua a revelar-se difícil
conciliar os contrários. Como, em 1974/75, se podia exigir mais
de nós?
Após o que entretanto se passou
em Angola e Moçambique, na África Austral e no Mundo, continuarão
a ser legítimo ajuizar sobre o nosso processo de descolonização
como se ajuizou no cenário e no tempo em que teve lugar?
Que cada um em consciência responda.
Seara Nova /
Março/Setembro 1994
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