Respostas do Dr. Almeida Santos
a três perguntas sobre a
descolonização, formuladas pela
Seara Nova



1.ª Pergunta - Quanto ao termo da guerra nas colónias, tudo era claro; havia parece, total unanimidade. Mas em relação à descolonização haveria a mesma unanimidade? Haveria algum plano operacional que conduzisse o processo e salvaguardasse os bens e as vidas dos nossos colonos?

Resposta - O processo de descolonização não é separável do termo da guerra. Este tinha um preço: a colaboração dos movimentos emancipalistas no processo. Ou aceitávamos pagá-lo ou tínhamos de enfrentar as consequências da continuação da guerra, já sem condições para isso.
Na Guiné, estávamos à beira do um colapso militar. Isso é hoje comumente reconhecido. Esse colapso não seria apenas o segundo - depois do desastre da Índia - mas o primeiro dos que viriam depois.
Após mais do uma década de guerra em três frentes, havia-se criado uma situação bem diversa da existente em 1961 , a quando do início das hostilidades militares. As nossas Forças Armadas estavam física e psiquicamente exaustas. Alguns quadros iam na terceira comissão consecutiva. Os meios de que dispunhamos eram em alguns teatros de guerra mais escassos e menos sofisticados do que os dos nossos opositores. O preço do petróleo disparava tornando financeiramente insustentável o esforço de guerra. A comunidade internacional - com raras excepções semi-ocultas - condenava a situação do nosso esforço bélico. Grandes potências se haviam colocado ao lado ou por detrás dos insurrectos, competindo ideológica e militarmente entre si por intermédio deles. Não se limitaram, ao menos no que diz respeito ao bloco de Leste - a apetrechá-los com armas e treino militar. Ensoparam-nos também em doutrinarismo.
Quando se deu o 25 do Abril, havia alinhamentos e fidelidades. Gratidões também. O bloco do Lesto - mas não só ele! – estava por detrás da Frelimo em Moçambique, do PAIGC na Guiné, o do MPLA em Angola. Os Estados Unidos da América espaldavam a FNLA em Angola. A África do Sul combatia "a latere" da UNITA e apadrinhava o baptismo da RENAMO. A luta tinha no essencial deixado de ser entre Portugal e os movimentos do libertação. Essa só que fosse e seria impossível ganhá-la. A luta tinha no essencial, passado a ser entre as grandes potências envolvidas. E esta não estava ao nosso alcance influir minimamente nela.
Foi neste cenário - de que obviamente se aperceberam - que as nossas Forças Armadas passaram a reclamar primeiro, e a exigir depois, o rápido regresso a casa. A opinião pública deu o mote: " nem mais um soldado para o Ultramar". Daí o embaraço: nem era possível manter no terreno as nossas forças nem era possível refrescá-las.
Acresce que entre os nossos soldados e os combatentes insurrectos, se estabeleceu logo após o 25 de Abril um pacto tácito e recíproco de não hostilidade futura. Passaram a confraternizar, a beber pelo mesmo copo, a cantar as mesmas canções libertadoras. Quem era capaz de pô-los, de novo, a combater?
Nestas condições, impunha-se negociar a paz. Se não a qualquer preço - que não foi esse o caso - de qualquer modo a preço não facilmente recusável. Lograda a paz, a descolonização tornou-se uma urgência.
Para os que receavam o recomeço das hostilidades; para os que rezavam pelo regresso dos filhos; para os que haviam aceitado o risco da própria vida para libertarem a Pátria; para a Comunidade internacional; para as próprias potências envolvidas nos teatros de guerra, que ansiavam pelo vazio colonial a fim de poderem ganhar espaço de manobra.
Resultado: a aceleração do processo. Desejada por todos. Imposta por muitos. Mas também o "enterro”, cuidadosamente preparado -  Fanon "dixit” - da máquina administrativa e económica colonial. Mas, deste "funeral", as vítimas foram também os próprios coveiros.
Em suma: a descolonização que foi feita foi a possível nas circunstâncias do caso. São fáceis, agora, os juízos de prognose póstuma. Mas a realidade impõe-se sempre com mais força do que os voluntarismos " a retro”.

2.ª Pergunta - Com a conquista da independência, parece acto descabido e altamente perturbador a súbita debandada dos nossos colonos desses territórios. Porquê tão gravoso retorno, tanto para a paz e desenvolvimento dessas novas nações como para os "retornados" e para Portugal, confrontado então com inúmeras dificuldades?

Resposta - O abandono dos territórios pelos colonos portugueses foi, repito, um acto meticulosamente preparado. -
Esse desiderato parece hoje estúpido, dadas as consequências funestas que teve para os novos Estados. Mas teve causas que hoje são claras, e até uma lógica hoje irrecusável.
À União Soviética, e aos seus aliados - internos e externos - convinha a criação do vazio colonial para poderem exercer sem constrangimentos o seu pretenso direito de ingerência.
Aos novos poderes emergentes seduzia uma Pátria sem o espartilho, ou em qualquer caso a condicionante do velho poder colonial. Fanon - repito - oráculo dos Iíderes dos movimentos, havia doutrinado que a verdadeira libertação passava pela imposição, aos velhos senhores, das mesmas humilhações que estes haviam imposto aos antigos servos: a violência injusta, a posse da mulher branca, o domínio da propriedade. E o exemplo das colónias que se haviam emancipado antes iam no mesmo sentido. Ganhar a guerra (na sua nem sempre irrealista convicção) e não ganhar os privilégios do branco era uma vitória sem sentido. A continuação da presença branca, e sobretudo dos direitos ou privilégios que o regime colonial lhes assegurara, eram inconciliáveis com o triunfalismo e o espírito de “revanche" posteriores à independência.
Daí o pânico - provocado ou meramente consequente - da maioria dos colonos. Daí a desertificação económica e administrativa. Daí a fome. Daí em parte a continuação em Angola e Moçambique da lula dos movimentos, agora entre si.
Foi pena. Mas a possibilidade de um entendimento genuíno e honroso entre as etnias em presença - incluindo a branca - foi conscientemente sacrificada no dia em que Lisboa preferiu a bravata militar às soluções políticas.
Quem não reconhecer isto sacrifica o raciocínio à paixão.

3.ª Pergunta - Sentia-se, na altura, directa e ou indirectamente, qualquer influência por parte das forças protagonistas da Guerra Fria, em particular dos Estados Unidos e da União Soviética?

Resposta - Sentia-se é pouco. Era óbvio! Essa foi, no fundo, particularmente no que diz respeito a Angola, mas também a Moçambique, a dificuldade maior.

Degladiavam-se no tabuleiro daquela ex-colónia portuguesa, os dois pólos imperialistas de então: a União Soviética a apoiar o MPLA, os Estados Unidos da América a apoiar a FNLA. E, como isso não bastasse, a vizinha África do Sul abastecia a UNITA e não raro lutava a seu lado.
Termos sentado os três movimentos à mesma mesa nas negociações do Alvor; termos assinado com eles um acordo em que se previa uma consulta eleitoral livre e democrática; termos constituído com eles um Governo Provisório; ter esse governo chegado a funcionar com sofrível normalidade durante alguns meses, relevaria do milagre se não fosse o caso de, muito provavelmente, as potências interessadas terem pactuado com tudo isso para se verem livres de nós.
Pouco depois, era a guerra civil, soprada de dentro e de fora. Para não sermos apanhados no fogo cruzado, e já incapazes de participarmos nele, sequer para o determos, fechámos o dossier e regressámos à nossa Itaca.
Na véspera da data aprazada para a independência, sem ter sido possível consultar o povo angolano, o MPLA ocupava a capital, cercado a norte pela FNLA e a Sul pela UNITA. Julgou-se, não sem razão, que era o fim do MPLA. Mas, perante a indecisão dos Estados Unidos da América - que então perfilhavam a famosa teoria da vacina  a União Soviética sentiu-se exortada a jogar forte. Enviou cubanos e roquetes. Colhidas de surpresa a Norte, as forças da FNLA puseram-se em fuga. Perante isso e a destruição a sul de uma ponte estratégica, a África do Sul fez recuar a UNITA. A guerra convencional tinha chegado ao fim. Ficaria no terreno, até aos dias de hoje, a UNITA a disputar em guerra de guerrilha o poder do MPLA, entretanto legitimado por sucessivos actos de reconhecimento diplomático. Que teria acontecido se as nossas forças armadas e os nossos colonos tivessem permanecido no teatro de guerra? Considero ainda hoje acertado termos saído antes.

Tudo isso hoje é transparente. Stocwell, ex-director da CIA para a área de Angola, em livro que publicou após a demissão, conta tudo até ao pormenor. Como esperar de nós o milagre inteiro? Ainda agora, já sem guerra fria; já sem o muro de Berlim; já com a URSS desfeita e a Rússia de rastos; já com a África do Sul governada por maioria africana de esquerda, continua a revelar-se difícil conciliar os contrários. Como, em 1974/75, se podia exigir mais de nós?
Após o que entretanto se passou em Angola e Moçambique, na África Austral e no Mundo, continuarão a ser legítimo ajuizar sobre o nosso processo de descolonização como se ajuizou no cenário e no tempo em que teve lugar?
Que cada um em consciência responda.
 

Seara Nova   /                                                    Março/Setembro 1994