Porquê ?
Na posse destes documentos, «O
Jornal», obteve alguns esclarecimentos junto de diversos círculos
políticos, normalmente de personalidades civis que estiveram ligados
à descolonização, sobre esta fase de negociações
entre Portugal e Moçambique.
A referência feita à carta
de Vasco Gonçalves pelo ministro Álvaro Barreto, precisa,
segundo esses círculos, de ser claramente entendida no contexto
das negociações então em curso entre Portugal e Moçambique,
na fase que se designou de transição para a independência.
Esse contexto não foi entendido pelo ministro no programa 2000
de terça feira passada, na RTP.
As negociações com a Frelimo
tiveram, antes da independência, quatro fases: a primeira, no Maputo,
em Janeiro de 1975; a segunda, no Guincho, em Fevereiro / Março
seguinte; a terceira, no Maputo, em Abril e a quarta, também, no
Maputo, em Junho, também de 1975.
Essas sessões tiveram, sempre,
a seguinte divisão de trabalho: uma Comissão A, que se ocupou
das questões relacionadas com a transferência do BNU e ainda
das ligadas ao Banco de Fomento Nacional e a Sociedade Financeira Portuguesa
e, bem assim, a outros interesses empresariais; a Comissão B tratou
das situações da dívida pública da então
colónia de Moçambique para o Estado Português. A comissão
C abordou problemas gerais da cooperação e a D tratou de
Cabora Bassa.
No final destas fases da negociação,
pode dizer-se que se chegou à seguinte conclusão: na Comissão
A, fez-se um acordo sobre todos os aspectos ligados à transferência
do BNU, tendo ficado pendentes as questões relacionadas com o Banco
de Fomento Nacional e, certos interesses empresariais.
São precisamente estas questões
não resolvidas que, em boa parte, explicam os problemas actuais.
A Comissão C avançou com vários textos de acordo em
matérias da cooperação. A Comissão D) conseguiu,
antes da independência (o que era fundamental para Portu¬gal)
chegar a acordo integral sobre o empreendimento de Cabora Bas¬sa e
a sua exploração, o que, como se sabe envolvia e envolve
respon¬sabilidades na ordem externa para Portugal de 30 milhões
de contos, só susceptíveis de amortização se
a venda de energia fosse possível a terceiros uma vez que, então
como agora, não há procura em Moçam¬bique para
a quantidade de energia produzida.
Na Comissão B, porém,
Portu¬gal e Moçambique chegaram, no final da terceira fase,
a um impasse. E isto porque Moçambique enten¬dia que a dívida
pública entre Por¬tugal e a sua ex-colónia não
tinha razão de ser exigível.
Esta dívida pública
dizia respeito a créditos do Estado Português e do Fundo Monetário
do Escu¬do e de avales sobre obrigações de fomento,
créditos de empresas (BNU, BFM, Sociedade Financeira Portuguesa,
etc.), por despesas do sector público, inscritas via divida pública
do Orçamento Geral de Moçambique. A liquidação
de operações a residentes em Portugal, ainda não expressas
em escudos portugueses, por carência de cobertura por parte do Fundo
Cambial de Moçambique (a célebre questão dos atrasos).
A posição da Frelimo teve
algumas variantes mas acabou por consolidar-se na tese segundo a qual,
num contexto de descolonização, tais créditos seriam
inexigíveis a Moçambique. E acabou por dizer que não
haveria qualquer outro acordo possível (no que se incluía,
evidentemente, a questão de Cabo¬ra Bassa) se Portugal continuasse
a exigir ao novo Estado aquilo que apenas se compunha de rubricas da dívida
pública da colónia de Moçambique, para com a Metrópole.
É neste contexto, e após
o impasse detectado no final da terceira
Fase, que é escrita pelo presidente
Machel a carta que hoje publicamos. Portanto, tal carta (para lá
do que tem de inadmissível ou até apreensivo ou insultuoso,
em múltiplas passagens), sempre foi enten¬dida, por uma parte
e por outra, como referindo-se exclusivamente às questões
levantadas na Secção B, independentemente de alargamen¬tos
do seu âmbito que alguém, pouco recordado, possa agora fa¬zer.
Iniciaram-se, então, e dada a
gravidade dos problemas penden¬tes, contactos de natureza política
para esclarecimentos de posições, tanto mais urgentes quanto
é certo que a independência se aproxima¬va, sem que os
acordos de Cabora Bassa estivessem firmados. Após estas diligências
reuniu a Comissão Nacional de Descolonização, com
a presença de vários ministros do IV Governo Provisório,
cujas pastas, de uma forma ou de outra, tivessem a ver com o assunto, e
deliberou, tendo a deliberação ficado a constar de acta,
que as rubricas da men¬cionada Secção B (em muitíssimo
menor montante que as das respon¬sabilidades emergentes de Cabora Bassa)
não deveriam ser exigíveis. E foi em função
dessa deliberação que a Comissão Nacional de Descolonização
incumbiu o Primeiro-¬Ministro de então de responder (em carta
que, hoje, também publicamos) à que Samora Machel lhe havia
dirigido, não tendo «O Jornal» apurado se a Comissão
teve ou não conhecimento prévio do exacto teor da carta enviada
pelo general Vasco Gonçalves.
Aliás, tal posição
é idêntica à que sempre foi seguida por governos estrangeiros
quando descolonizaram os seus territórios, por considerarem que,
efectivamente exigência de dívida pública a Metrópole
a Colónia são incompatíveis com a descolonização.
E, também, de resto a posição subsequente de futuros
governos portugueses, no¬meadamente o VI Governo Provisório
foi inteiramente idêntica no que respeita a divida pública
da Guiné, Cabo Verde e São Tomé.
Consequentemente, e sempre se¬gundo
os mesmos círculos, tal carta de Vasco Gonçalves só
pode ser en¬tendida no contexto restrito a que se referia, e não
pode ser aplicada a todas as questões actualmente pen¬dentes
e que resultam, estas sim, da Lei 5/77, de 31 de Dezembro de 1977, publicada
em Moçambique, e com incidência exclusiva nas actividades
do Banco Pinto e Sottoma¬yor e do Banco de Fomento Nacio¬nal, além
do antigo Banco de Cré¬dito Comercial e Industrial e o De¬partamento,
em Moçambique, do Banco de Angola.
Entretanto, segundo fontes próximas
do tenente-coronel Melo Antunes, a carta do general Vasco Gonçalves
não exprimirá exacta¬mente o que se passou em Haia, onde
a delegação portuguesa não terá aceite tal
princípio, sendo ultrapas¬sada pelos acontecimentos.
Por outro lado, círculos ligados
ao comandante Vítor Crespo salien¬taram a «O Jornal»
que o então Al¬to-Comissário em Moçambique vá¬rias
vezes se viu ultrapassado ou de¬sautorizado após intervenções
di¬rectas de Samora Machel junto do Primeiro-Ministro, só não
tendo abandonado o cargo dado haver outros altos interesses de portugue¬ses
em jogo.
O Jornal 12/04/79 |